Ano VII

Abertura – Brasil Ano 2000, Anecy e a estrada

domingo jun 16, 2013

Abertura – Brasil Ano 2000, Anecy e a estrada

Um Brasil que nos força à frase pronta “o país sem memória”, que deixa ao abandono histórico fatos ocorridos ontem, caso da ditadura militar, como se fosse um evento da era paleolítica, e que não fez diferente com os cineastas e seus cinemas daqueles anos. É nesse contexto que a 8a Mostra de Cinema de Ouro Preto ganha, mais uma vez (e desde sua primeira edição), um papel mais de revelação do que celebração. Não que Maurice Capovilla, Nelson Pereira dos Santos, Francisco Ramalho Júnior, Jurandyr Noronha (este, virtualmente, em depoimento gravado e projetado na tela) e o homenageado deste ano, Walter Lima Jr., estivessem no palco da noite de abertura para, a partir dali, serem devidamente reconhecidos. Não há “devidamente” e nem “reconhecidos”. Até porque reconhecimento pode servir à oficialidade. A razão é outra: rever, reconsiderar, voltar aos filmes. E, nesse país desleixado com as remissões de sua própria história, fica difícil lembrar de Nelson Pereira dos Santos se um O Amuleto de Ogum, um Fome de Amor ou um Vidas Secas é exibido, quando muito, no horário esquecido da madrugada no Canal Brasil.

E como perceber historicamente esses filmes? (Sim, historicamente, pois a estética está nessa construída narrativa que a história pede para ser História) A pauta dessa 8a edição, sobre o cinema brasileiro nos anos da ditadura militar, afetados já pelo AI-5, em recorte entre 1964 e 1969, é quase um manifesto sobre a limpeza de algumas simplificações que serviram menos para sintetizar e bem mais para aplainar numa ideia pronta a complexidade daquele cinema. Essa faxina, na verdade, está numa escolha bem refinada de filmes, passando somente por alguns consagrados – Terra em Transe foi exibido à tarde, enquanto eu estava a caminho de Ouro Preto, antes mesmo da cerimônia de abertura, como se uma introdução orientadora para o que viria nos dias seguintes. É, por exemplo, se importar em trazer filmes menos selados pela historiografia oficial, mas igualmente históricos (feitos naqueles anos) e fortes, como Bebel, Garota Propaganda, do Capovilla, e Anuska, Manequim e Mulher, do Francisco Ramalho.

Ou trazer, na abertura, um clássico menos lembrado, como Brasil Ano 2000, e exibi-lo em condições justas: cópia nova em 35 mm, com algumas cenas antes cortadas. Rodado em 1968, lançado em 1969, o filme de Walter Lima foi honrado nas páginas de Alegorias do Subdesenvolvimento, de Ismail Xavier, mas hoje ele parece destinado a ser apenas “um exemplo de alegorização típica da época”. Ora, as alegorias estão no filme, mas não são o filme. E por que catalogá-las e descrever seus significados? Walter Lima, já ali, trabalha com uma encenação que flui mais livre, em espaços abertos e cheios de ar, atmosfera, oxigênio (como em Ele, o Boto, A Ostra e o Vento). O que ocorre, inclusive no A Ostra…, é uma prisão menos física e bem mais imposta por uma instância superior, seja da natureza, seja de uma ordem que rege aquele universo. De Brasil Ano 2000, com a mãe e os dois filhos que, após uma guerra que devastou o planeta, seguem para o norte do país em busca de prosperidade e acabam parando numa cidade que é síntese do Brasil de 89-69, abatido pelo AI-5, importa mais o estilhaçamento dos discursos, do trajeto possível, da ordem, da revolução. O jornalista feito por Ênio Gonçalves, o mais arguto naquela confusão, é quem revela a farsa política (do país), mas permanece agindo mais como elemento útil, dentro, quase cinicamente. Do seu irmão boçal ou a mãe que se mantém numa cegueira conservadora classe-média, é a filha feita por Anecy Rocha quem força movimento, entrosando-se, assumindo papeis, apaixonando-se pelo repórter fotográfico, buscando.

O foguete que enguiça e não é lançado na base da cidade de Me Esqueci é, sem dúvida, uma imagem do país real, ali com os milicos bradando que seria a nação do futuro próspero. O foguete acaba partindo, mas ainda em defeito, sem piloto, seguindo a esmo para o céu, sem controle, perdido, descontrolado. Imagem forte do Brasil 1969, mas é, literalmente, um foguete subindo. É quase ele advertindo para não catalogarmos os signos alegóricos, não destacá-los do filme, pois eles são presenças necessárias e intrínsecas à realização dos discursos mais politicamente fortes naqueles tempos.

Não na mesma direção dum PM e seu cavalo derrapando em O Bandido da Luz Vermelha, mas bem mais livre que uma mera exposição simbólica do país – graças à encenação. E graças à Anecy Rocha. Brasil Ano 2000 expõe incertezas, roldana emperrada, caos da evolução política, país engripado, mas o que está em jogo, na cena, na narrativa, é uma mulher decidindo-se, ao final, sair da feijoada da piscina (Macunaíma) daquele estado de coisas e buscando uma estrada a seguir. Seu destino é incerto, mas o movimento é claro. O desperdício de se lê-lo, e não olhá-lo, tira de Brasil Ano 2000 o que ele possui de mais lindo, entre metáfora e outra, entre alegoria e outra, entre signo e outro, que está na retidão objetiva do que está em cena: a força e beleza de Anecy Rocha, uma estrada que segue reta ao fundo do plano, a paisagem arbórea, uma mulher seguindo por esse caminho e sendo o elemento de mudança espacial dentro daquela estrutura estanque da via asfaltada. Bom lembrar aqui, inicialmente Walter Lima Jr. faria uma filme sobre a Transamazônica, que os anos provaram ser a maior piada trágica nacional, pois um dispositivo de movimento que só trouxe atolamentos, coisas emperradas. Nada a ver com a leitura estanque, estatuária e definitiva dos signos alegóricos, Anecy Rocha fechou a noite de abertura da 8a CineOP, linda e seguindo seu caminho, como um movimento em gerúndio, ainda em andamento hoje, ainda incerta também, mas avançando ao passo da história. Brasil Ano 2013.

Paulo Santos Lima

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