Ano VII

Entrevista: Miguel Gomes

terça-feira jun 4, 2013

 

Falar que existe uma brilhante geração, hoje por volta dos 40 anos, no cinema português é chover no molhado. Seria como dizer que Xavi é o maior passador do futebol mundial ou Lebron James o jogador de basquete mais completo.

Ainda assim, um pleonasmo necessário. No circuito brasileiro, cada vez mais incentivando a monocultura, são poucos os longas de Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Miguel Gomes, João Canijo que, de fato, estrearam. No máximo – e ainda bem que elas existem –, ficaram restritos em retrospectivas, como a Mostra Cinema Português Contemporâneo na Caixa Cultural e Pedro Costa no CCBB, ou a homenagens em eventos de maior porte, como João Pedro Rodrigues no Festival do Rio e Miguel Gomes na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Então, por mais óbvio, é preciso lembrar dessa qualidade. Dentre esse conjunto de realizadores – que necessariamente passa pela produção da O Som e a Fúria e poderia incluir também Teresa Valverde, João Nicolau, Miguel Fonseca – salta Miguel Gomes e seu cinema absolutamente imprevisível, já analisado nesse artigo pela Revista Interlúdio.

Num misto de rigor e chiste, apuro e zombaria, Gomes faz, com Tabu, seu filme mais sério. Fala-se de memória, inocência, juventude e, acima de tudo, saudade – dos personagens por um passado adornado de outrora ou do próprio cinema, que já não mais conta com o espectador disposto a acreditar em tudo.

Na entrevista abaixo, concedida durante a passagem de Gomes a São Paulo em outubro de 2012 a convite da Mostra, o cineasta destrincha seu processo de criação, seja pelo viés sério – “o roteiro é um ponto de partida apenas” –, seja pela pilhéria – “cada filme que faço tem uma bebida temática”.

E nos relembra a palavra-chave para entender seu cinema. “Isso é uma das coisas que quero, dar liberdade ao espectador, é quase como haver dois filmes ao mesmo tempo. Um filme cômico e uma tragédia, não tem de escolher um ou outro, pode haver os dois ao mesmo tempo, passares de  um para o outro e isso também permite ao espectador ser livre, sentir-se mais próximo do lado mais irônico ou viver mais profundamente o melodrama, o amor.

Heitor Augusto

Apesar de alguns pontos de diálogo, seus curtas e longas são bastante distintos entre si. Por quê?

Porque eu acho que quando se começa a fazer um filme não há outra maneira senão que esse filme seja o primeiro, mesmo que já tenhas feito muitos. Cada filme traz uma nova expectativa, obriga a uma pintura nova. Então eu faço uma coisa que é inventar regras diferentes de convívio a cada filme para estar com as pessoas da equipe em modelos de produção diferentes. Isso dá um resultado distinto a cada filme.

Podem ser regras tão estúpidas como haver bebida oficial a cada filme. Por exemplo, durante A Cara que Mereces, o uísque era a bebida. Eu bebi uísque e convidava toda a gente no filme a beber uísque. Não só os atores, toda a gente. Já Aquele Querido Mês de Agosto é um filme de chopinho. Naquela região é muito quente, há umas cervejas chamadas mini, que são muito pequeninas para que fique sempre gelada. É o que as pessoas de lá tomam durante as festas e nós também tomávamos essa cerveja. Tabu é um filme de gim-tônica, que achávamos ser uma coisa mais colonial – mesmo na parte do filme rodada em Lisboa servíamos, no final de cada dia, gim-tônica para equipe.

Isso é o lado mais anedótico. Ao mesmo tempo cria-se uma espécie de unidade porque é uma conjunto de rituais que nós inventamos e que fazem que cada filme seja aquele filme e não um outro. Se quedar há continuidades provavelmente também porque são filmes que partem de mim, ninguém me impõe nada, nunca tive um produtor a dizer “tens de fazer assim ou daquela maneira”. Tenho essa sorte de ter sempre feito da maneira que me apetece – e isso é resultado também de não filmar com muito dinheiro. Não há essa pressão do dinheiro e podemos desfrutar de certa liberdade…

 

Com quanto você filma?

O orçamento vem crescendo a cada filme. Tabu custou o mesmo que os outros dois longas juntos, entre um US$ 1,5 e US$ 2 milhões, o que não é muito para a Europa – um pouquinho mais baixo que o preço médio na Espanha e menos que na França ou Inglaterra. Porém, para o que é comum em Portugal é um bocado mais caro, uma vez e meia a duas mais caro.

Voltando à pergunta anterior, por que os filmes são diferentes? Porque eles são o resultado de um desejo qualquer, desejo de cinema equiparado com a realidade que existe naquele momento – a realidade é a grana, com quem quer fazer o filme, aonde, dias que vai filmar, isso é a realidade.

Entre esse desejo que esteve por trás do filme, a vontade de filmar com certas pessoas, fazendo certas ações, tendo certa histórias, incluindo canções que eu quero, coisas que quero naquele momento por num filme, depois a realidade que existe para fazer, as condições, isso tudo muda. Portanto cada filme é um filme diferente. E tenho sempre essa sensação de que a cada novo filme meu é o meu primeiro.

 

Como é seu processo de escrita do roteiro? Se tomarmos Aquele Querido Mês de Agosto como exemplo deve fugir do costume…

Para a segunda parte de Tabu não havia roteiro. A escrita da voz em off foi feita durante a montagem. Há sempre um dia nos meus últimos filmes em que o produtor sempre chega para mim e diz “não há dinheiro para fazer o que está no roteiro”. Tenho duas hipóteses: esperar que o dinheiro venha, o que é difícil; outra hipótese seria reescrever ou filmar uma versão mais pobre daquele roteiro, o que acho que seria mal.

Então é preciso reestruturar o filme e acho que é melhor fazer isso filmando, reinventado. Mantendo o tal desejo que esteve por trás da escrita daquele roteiro, mas jogando fora o roteiro e tentando inventar com as pessoas com quem estou a trabalhar um filme durante a própria filmagem. E portanto há sempre um processo muito orgânico.

Filmo os personagens com quem tenho uma ligação, mesmo que seja irônico com eles – às vezes pode ser muito irônico, mas isso não quer dizer que um diretor tenha de se fazer de juiz. Não gosto disso no cinema, quando um diretor aponta o dedo aos personagens e diz ao espectador “vejam como eles são maus”. Acho que isso é infantilizar o espectador, ele não precisa disso. Ele precisa é de ter seu espaço de liberdade e poder, sem o diretor o dirigir para achar alguma coisa, ter esse espaço de liberdade para olhar para um filme e perceber por ele próprio todas as camadas que existem no filme – de ironia, de… a coisa mais generosa é deixá-lo estar com os personagens.

Sinto que existem as duas coisas ao mesmo tempo. Em Tabu é muito visível isso, mas meu processo é esse. Muda de filme para filme. Digamos que exista sempre um roteiro inicial, escrevo esse roteiro sozinho ou com alguém, às vezes acabo jogando fora porque para mim ele é ponto de partida. Há diretores da história do cinema que eu gosto, como o Hitchcock, que faziam trabalho prévio antes da filmagem, inventavam a história, faziam o roteiro, storyboard. A filmagem era só a ilustração daquele roteiro, daquele storyboard. E ele fez filmes magníficos assim, ou seja, foi um bom processo pra ele. Mas não é o meu.

Roteiro é ponto de partida e o produto final pode ser mais próximo ou mais distante desse ponto de partida, mas é um processo evolutivo. Entre o ponto de partida e de chegada há toda uma transformação que vai depender dos sets que escolhes, da história que vai vivendo na tua vida também. Um longa para mim tenho levado dois, três, quatro anos para fazer, tempo em que estou cá a trabalhar nesse filme. Em quatro anos a vida muda, conhece pessoas diferentes. Não consigo cristalizar, agarrado à ideia inicial ou roteiro do início. Tem de haver um processo.

 

Curioso você dizer que Tabu é o seu filme mais “sem roteiro” porque tenho a sensação de que, como filme, ele é o mais “pré-determinado”. A Cara que Mereces e Aquele Querido Mês de Agosto é que me dão a impressão de processo…

Não! Talvez o que esteja mais próximo do roteiro, por mais estranho que isso pareça, foi A Cara que Mereces. Se não acreditas em mim temos aqui o Ivo [Müller, ator brasileiro que interpreta o marido de Aurora] para dizer que não havia roteiro na segunda parte. Havia roteiro inicial, mas o que aconteceu é que não havia mais dinheiro. Por exemplo, quis muito ir filmar naquela região que fica quase a dois mil quilômetros de Maputo, uma região sem muita estrutura. Uma ideia bocado louca tentar fazer um filme passado nos anos 1960 de colonos brancos, em África, no lugar que fomos, só havia uns cinco brancos a viver lá num raio de 300km.

No roteiro original havia uma cena de casamento de brancos em que o noivo e noiva vinham para o casamento em cima dum elefante com trajes tradicionais do norte de Portugal, havia uns duzentos brancos dançando. Esquece, não tinha como. Eu abdiquei desse roteiro e propus com atores irmos todos para aquele lugar e inventar. Tinha quatro atores, a Ana Moreira [Aurora], o Carloto [Cotta, intérprete do Ventura], Ivo e Manoel Mesquita [Mário]. O resto eram pessoas da equipe ou de lá.

Então nós formávamos um pequeno grupo dentro da equipe, que chamávamos de Comitê Central [que é inclusive creditado no fnal de Tabu]. Estávamos então com uma espécie de estrutura revolucionária, mas fazendo um filme colonial [risos]. O Comitê Central reunia-se todos os dias depois das filmagens para tentar imaginar novas cenas ou pra eliminar cenas que já tínhamos pensado e que não valia a pena filmar.

A história geral sabia-se: Aurora e Ventura se apaixonavam, o crocodilo, tinha um traidor, ficar grávida etc. Mas não se sabia cenas, não havia roteiro para isso. Inventamos tudo lá, eu acho que foi de generosidade imensa da parte dos atores, sendo atores profissionais, como o Ivo, ator de teatro.

Não era possível programar cenas antecipada. Os personagens tinham um conjunto de roupas que não sabíamos quando usar porque não havia roteiro definido. Escolhíamos assim: “Vais vestir isso hoje”. Havia uma série de coisas que no cinema estão pré-definidas, mas não no meu filme porque não havia roteiro. Quer com atores quer com a equipe, o que preciso é ter pessoas que sejam flexíveis, capazes de se adaptar a cada momento a novas situações. Desde os curtas filmo com muitos deles, já conhecem a mim. Com o Ivo e com Ana é que foi a novidade. Quando escolhi o Ivo a única coisa que perguntei aos Gullane [Fabiano e Caio Gullane, coprodutores brasileiros] foi “o cara tem frescura ou não?”. Ele vai para África, não sabe o que vai filmar e tem de estar disponível. A Ana Moreira perguntou ao Luís Urbano [produtor português que recentemente comandou O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira]: “Mas o maluco do Miguel não nos vai querer por a dormir em tendas no meio da selva, né?” [risos].

 

Mas existe uma questão pragmática: é preciso ter um roteiro para mostrar ao burocrata na hora de financiar o filme, não?

Isto é como jogar poker. Nós escrevemos para captação. Escrevemos a história e, mesmo que o filme seja de alguma maneira diferente, acho que está lá aquilo que chamo de desejo de cinema, um determinado universo já estava lá naquele roteiro. Depois, o filme é diferente. Fazemos esse roteiro, entregamos para captação, pros fundos. Foi assim em Portugal, França, Alemanha e Brasil, onde recebemos dinheiro.

Aí é jogo de poker: se o filme não for parecido com o que estava no roteiro, mas correr bem, toda a gente diz “que maravilha, o roteiro é lindamente filmado”. Se corre mal podes ter problemas. Até agora foi correndo mais ou menos bem para mim, então ainda não tive de me confrontar com essa situação.

 

Voltando ao filme. Há diferentes possibilidades de leitura. Podemos ver Tabu como história de amor e de perda. Mas antes desse há outro filme, que é sobre o próprio cinema. Como você o enxerga: inserindo-se na história do cinema, amalgamando-se, fazendo uma homenagem…

Certamente não como homenagem porque o o cinema não precisa ser homenageado. A homenagem ao cinema é continuar fazendo filmes. Agora, existe a memória e o filme tem a ver com a memória do cinema. E acho que os personagens da primeira parte do Tabu sentem falta não tanto da perda do império ou da terra, mas da perda dos anos da juventude. Esse é o paraíso perdido, para alguém mais velho o paraíso perdido são os anos da juventude. E o cinema tem a mesma relação com o tempo. O cinema é velho, foi ganhando idade, tem mais de cem anos, e de alguma maneira sinto que cinema tem saudades de sua juventude, que pode ser o cinema mudo, o cinema do Murnau, o cinema onde acho… por exemplo: a cena das nuvens no céu, quando elas se transformam em animais. Esse tipo de coisa existia muito no cinema mudo, porque o cinema era mais jovem e os espectadores mais disponíveis para acreditar. Essa inocência foi se perdendo.

Portanto penso que o cinema está mais velho. Como espectadores nós fomos ganhando consciência da coisa e portanto perdendo a inocência. Quando eu era pequeno acreditava no Papai Noel e depois descobri com grande tristeza que ele não existia. O cinema nos permite reencontrar essa inocência. Então acho que o cinema moderno tem saudades, sente falta do tempo da juventude do cinema.

Tentei com Tabu fazer cinema contemporâneo, não fingindo que estou em Hollywood nos anos 30…

 

Não como O Artista?

[risos] Não mesmo. Fui tentando inventar uma maneira de chegar a essa inocência perdida. É difícil. Mesmo sabendo que o espectador tem consciência da mentira que é o cinema, tentei criar condições ao espectador para que ele possa comover-se olhando nuvens que se transformam em animais.

 

Então estamos falando aqui não de inocência do cinema, mas de um olhar virgem do espectador.

Mas para mim são quase a mesma coisa. Muitas vezes se fala sobre o ponto de vista do diretor, mas eu queria dizer que estou cagando para o ponto de vista do diretor na maioria das vezes. É aquela coisa que nós falamos: muitas das vezes eu sinto que o diretor está forçando o espectador a achar isso ou aquilo daquele personagem e eu acho que o ponto de vista mais importante numa sala de cinema é o do espectador. Não quero dizer de audiência, não tem nada a ver com essa conversa sobre o público generalizando, falo de cada espectador que tem de ter, olhando o filme, um espaço de liberdade para poder se relacionar com o filme e fazer seus próprios juízos de valor, seu próprio julgamento sobre aquilo que se passa, sem ser o diretor a martelar na cabeça do espectador o que se está apreciando.

 

Você almeja um espectador autônomo, apto a pensar sozinho?

Sim. Há tudo nas salas de cinema. Há uma cena em Tabu em que Pilar e o Pintor estão a ver um filme. Não vemos o que eles veem, só a canção, Be my Baby, que se repete depois. O que acontece: o Pintor está dormindo, já que para ele aquele filme deve ser chato, ou tem metabolismo muito lento etc, ao passo que ela está comovida e chora. É isso que se passa todos os dias na sala de cinema, cada um de nós está sempre, como espectador, sozinho, mesmo na sala lotada, somos nós sozinhos olhando para uma tela e o filme vai nos interpelando. Mas cada um de nós tem experiências de vida diferentes, gostos diferentes, sentido de humor diferente. Somos todos diferentes. A ideia de fazer um filme para toda a gente parece-me uma bobagem, qualquer coisa um pouco fascista, isso é impossível. Um filme vai nos capitular a coisas diferentes.

O trabalho de um diretor é criar condições pra que o espectador possa com a sua própria experiencia olhar e viver o filme à sua maneira, sem ser obrigado a achar isso ou aquilo.

 

Uma característica que chama bastante atenção em todos os seus filmes é o componente cômico. Qual é a sua relação com o humor?

Como te disse tenho a sorte de poder fazer filmes pessoais, estou livre para fazer filmes. Acho que dos meus filmes tenho essa sorte de colocar um bocado da minha personalidade, meu olhar sobre as coisas, a maneira como as sinto. Acho que é uma  faceta de mim, o humor, faz parte da minha vida, e passa paro filme. Acho que o cinema não é a vida, aliás não estou muito próximo de um cinema realista…

 

Você não está nada próximo!

[risos] Mas acho que não sendo a vida, há alguma coisa no cinema que é como na vida, que é às vezes ao mesmo tempo tu tens tragédia daquelas de arrancar cabelo e ao mesmo tempo é cômico, as coisas são cômicas. Isso é uma das coisas que quero, dar liberdade ao espectador, é quase como haver dois filmes ao mesmo tempo. Um filme cômico e uma tragédia, não tem de escolher um ou outro, pode haver os dois ao mesmo tempo, passares de  um para o outro e isso também permite ao espectador ser livre, sentir-se mais próximo do lado mais irônico ou viver mais profundamente o melodrama, o amor.

No caso de Aquele Querido Mês de Agosto havia pessoas que às vezes tinham duas respostas completamente diferentes. Diziam: não gosto desse filme porque está a sacanear, a abusar com as pessoas do campo em Portugal, aquela música é um retrato cruel daquela realidade cultural etc. Outros diziam: aquilo é uma glorificação do povo português, como somos incríveis, generosos, lindos etc. Eu ouvia as duas coisas e dizia sempre: eu não quis fazer nem um, nem outro. Mas isso é vosso, vocês acham isso, é o vosso filme. Filmei as pessoas que tinha à frente, da maneira que pude filmar a cada dia e há aspectos mais cômicos e outros mais comoventes, tinha de ter as duas coisas ao mesmo tempo.

 

Por isso que há um trânsito de gêneros dentro de cada filme seu.

É…hmm… não sou muito obsessivo, quer dizer, pelo menos quando estou a fazer um filme, não quero fazer tudo com a mesma nota. Pois, para tocar uma melodia é preciso notas diferentes e não estar sempre tocando na mesma tecla não acho bom, acho chato.

 

Você fala que Tabu diz mais respeito à saudade da juventude do que do protagonismo imperialista português. Ao mesmo tempo, João Pedro Rodrigues, contemporâneo seu, faz A Última Vez que Vi Macau, que fala de saudade do cinema, mas de um fascínio do passado colonialista. Seria essa uma questão comum que paira a sua geração?

Acho que começa a ser diferente, o que acho que existe é… acho que há alguma coisa de extremos. Havia os saudosistas da colônia, muitos portugueses que ainda estão vivos e que lutaram a guerra e houve muita gente nos anos 60 e 70 que regressou das colônias para Portugal. É uma questão sensível, deixou cicatrizes na sociedade portuguesa. Depois da revolução do 25 de abril de 74 houve uma maneira de olhar o império que foi um bocado revanchista. Dizia-se que todos os brancos eram exploradores, demônios etc. Houve uma coisa extremada.

A ficção portuguesa de 74 pra frente, depois do fascismo, tentou ser muita pedagógica, de apontar o que era mal, o que era bom. Entendo que em 2012 as pessoas já saibam que regime colonial é uma coisa má, que espectadores já saibam isso, já nesse nível civilizacional, não precisaria por as coisas de uma forma tão esquemática. Embora eu acho que no filme a primeira parte existe a sensação de qualquer coisa que não rolou bem, de culpa generalizada, que não se liga a nada, de mal estar – Aurora diz que tem sangue nas mãos, parece uma velhinha biruta, mas se pá ela é culpada –, escolhi como personagem principal da primeira parte a Pilar, alguém a lidar com a culpa, que quer endireitar o mundo, que é uma tarefa um bocado impossível.

Mas existe essa consciência na primeira parte de que tudo está mal, que é absolutamente o contrário da segunda parte, dos colonos brancos que estão como se estivessem fazendo filme em Hollywood, estão se divertindo, oferecendo jacarés, vivendo vida como num filme, fazendo perseguições de automóvel. E é um filme que corre mal porque acaba com sangue e quando se disparam aqueles animais, existe um amor disfuncional, porque existe aquele bebê da Aurora, ela está barriguda, de barriga, um love affair completamente disfuncional, que é a metáfora da situação política de um país, ali tentando manter uma colonia em 1974! Portanto a barriga da Aurora é quase bomba-relógio que vai explodir e que se separem.

Então é comentário da situação política, que era um tique-taque, toda a Europa e as Nações Unidas a dizer “Portugal, tens de dar indepenência aos países”, mas Portugal foi sempre evitando as evidências, olhando para o lado, tentando lutar uma guerra absolutamente injusta que causou muitas mortes nas colônias e em Portugal. Então havia essa relação dos brancos brincando de ir ao cinema, como Meryl Streep e Robert Redford em Entre Dois Amores, e sem perceber que o país ia se desmoronar.

 

Ainda sobre a sua geração, mas num aspecto cinematográfico. Como explicar esse conjunto de uns oito, dez realizadores a se prestar a atenção, fazendo cinema num momento em que o Estado português está falido, num ano de 2012 sem investimento financeiro algum, apesar dos prêmios em festivais, como o de Tabu em Berlim?

2012 é um ano de paradoxos e contradições profundas no cinema português. Por um lado, paralisação total da produção de cinema, zero filmes apoiados pelo Estado português em 2012, mas também um ano em de grande projeção de filmes portugueses que, hipocritamente, o poder político se logrou enquanto despachavam, não liberavam nenhum dinheiro. Agora, é uma situação contraditória. Estamos à espera de uma nova lei de cinema [a entrevista foi realizada em outubro de 2012], que ainda não foi regulamentada. Ainda não li regulamentos, mas falei com meu produtor que me disse que a regulação é absurda, impossível de se concretizar nesse momento.

O sucesso do cinema português também está, por outro lado, ligado às condições. Tem a ver com o fato de não haver muita grana para o cinema português e essa ausência da pressão do dinheiro oferece uma liberdade que, por exemplo, se calhar o Brasil não tem. O Brasil tem um mercado muito maior…

 

Um mercado virtual, imaginado, diga-se.

Mas nós não temos. Olha só, é um bocado esquisito eu dizer isso, mas quiçá nós temos a sorte de o nosso mercado ser muito pequeno. Portanto, mesmo no nosso mercado potencial é muito difícil o filme chegar e com bilheteria cobrir seus custos. Então para que produzir cinema comercial? Quer dizer, há quem tente, nunca consegue, é sempre um fracasso, e às vezes há filme comercial apoiado pelo Estado, o que eu acho um pouco estranho, não é a minha ideia do que é o serviço público, que normalmente apoia um cinema que não pode existir apenas pela lei do mercado porque não tem aqueles ingredientes que normalmente agradam o grande público.

Mas a sorte do cinema português ou aquilo que acho que tem resultado nesse cinema português tem vindo dessa ausência de pressão do dinheiro, que faz com que os diretores sejam mais livres para fazerem seus filmes e possam se dar ao luxo de fazer um cinema pessoal.

 

Algo como “já que não é para multidões, então dane-se”.

Isso aí.

 

* Entrevista concedida em outubro de 2012, durante a Mostra Internacional de Cinema, para Heitor Augusto.

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