Ano VII

Ataques e defesas

terça-feira mai 7, 2013

Ataques e defesas

Recentemente um texto que escrevi sobre Doméstica causou uma polêmica que me pareceu desmedida, e justamente no lugar em que polêmicas desmedidas geralmente ocorrem: no Facebook. [Ou, como diria Tom Zé em seu disco genial: no Tribunal do Feicebuqui, em que, entre outras coisas, ele diz que "a diferença entre esquerda e direita já foi muito clara, hoje não é mais".] Virei automaticamente um cara "de direita". Porque associei o filme a um certo adesismo automático que noto geralmente na esquerda (mas não só) quando esse tipo de filme engajado socialmente aparece. Notem, contudo, que eu não falei da esquerda do facebook, mas de um grupo de pessoas que adere a tudo que venha da esquerda ou do que pensam ser de esquerda. Estava criticando uma prática que considero extremamente nociva, não a esquerda em si. Não acredito que um filme deva expressar uma posição política semelhante à minha. Não é isso que me guia na crítica cinematográfica. Não é por me afinar com o que normalmente se considera uma posição de esquerda (entendendo, aqui, que essas dicotomias são bem mais complexas atualmente) que eu apoiaria um filme associado à mesma posição, mas que, em minha opinião, é medíocre.

O que me guia, por sinal, pode ser resumido mais adiante aqui (que terá continuação, mais burilada, em poucas semanas). Por enquanto quero passar por alguns pontos tirados da recepção ao meu texto.

Os reclamadores questionaram principalmente a maneira como eu falei pouco do filme  e em como eu me deixei afetar pelo entorno que o promove. Pretendi criticar duramente essa adesão automática. Alguns entenderam, outros não. Há quem tenha me parabenizado pela coragem e perspicácia, mesmo gostando do filme em questão (incluindo pessoas notadamente de esquerda).  Concordam que é necessário combater o acriticismo que domina o facebook em todas as frentes (e que revela sua face nefasta quando é confrontado).

Mas de certo modo a reação exagerada reflete um estado de coisas perigoso no panorama artístico brasileiro. Não se pode mais criticar, sobretudo filmes brasileiros. Qualquer texto elogioso a um filme pequeno feito aqui é considerado lindo, belo, inspirador, o diabo a quatro. Qualquer crítica mais dura a esse mesmo tipo de filme é vista como monstruosa, equivocada, daninha, mal alinhavada, e coisas do tipo. Críticas negativas são toleradas ou encampadas caso estiverem contemplados elementos de paternalismo, condescendência. Se forem tentativas de entender o que teria dado errado a partir de uma boa intenção e o que estaria no caminho certo. Isso se chama blindagem, palavra citada por muitos que me apoiaram.

Uma das críticas ao meu texto, contudo, me pareceu pertinente (a do tom, de certo modo, também, uma vez que é possível ter havido também um exagero de minha parte nesse sentido). Não se entendeu direito o porquê de eu não ter gostado de Doméstica, do porquê de eu não considerá-lo uma intensa experiência estética. Reproduzo aqui trecho de um texto que escrevi em 2010 para a Revista Taturana:

Uma pergunta que ouvi no fim de 2009 ainda ecoa na minha cabeça: “Qual seria, hoje, o cinema a ser defendido?” Depois de alguma hesitação, respondi: “o cinema que apresentasse alguns ou todos os preceitos de Mizoguchi, ou, se não fosse possível apresentar tais preceitos, que pelo menos não os negasse”. Em alguma medida, a maior parte do que interessa no cinema contemporâneo responde por algum princípio que Mizoguchi defendia – e como ele, de maneira ligeiramente diferente, defendiam Raoul Walsh, Otto Preminger, Fritz Lang, Joseph Losey, Ida Lupino, Shohei Imamura, Manoel de Oliveira, Jean-Marie Straub & Danielle Huillet, Abbas Kiarostami, Andrei Tarkovsky e alguns outros, todos diretores com um ou mais pontos de contato com a estética de Mizoguchi. Essa estética é baseada na câmera persecutória e na discrição no registro das emoções do ator, para que essas mesmas emoções se transfiram diretamente ao espectador, sem chantagens nem manipulações. Walsh e Preminger, por exemplo, acreditavam no plano-sequência como respeito ao trabalho do ator e como possibilidade maior de conseguir o máximo de sua interpretação e assim pensava, também, Samuel Fuller, Joseph Losey, Max Ophuls e Shohei Imamura. Lupino e Lang ainda respeitavam a inevitabilidade do confronto com o espaço, assim como o registro que preservasse a intimidade do ator. Straub e Oliveira convergem pela preocupação com o texto, com as diferentes entonações que esse texto pode proporcionar, e pela maneira como essas entonações dirigem a performance do ator dentro do espaço cênico.

Mexeria em algumas coisas, obviamente, porque foi escrito há mais de três anos e muita coisa mudou, sobretudo em mim. Acrescentaria à estética mizoguchiana a preocupação com a composição de quadro e com os limites da tela e com as variadas distâncias entre atores e câmera. Mas o essencial no momento – o cinema que defendo – já estava nele (como está em outros textos, bons ou ruins, que escrevo desde 2000).

Doméstica está muito distante dos preceitos cinematográficos que defendo (ver adiante o trecho denominado "A proposta"). A entrega de imagens a terceiros, e a estratégia questionável de fazer com que as imagens voltem-se contra eles mesmos, me pareceu um equívoco. O ponto de vista do filme está sujeito a um programa estabelecido a priori. Programa este que contempla a grande possibilidade de adesão imediata, quaisquer que sejam as sucessões de imagens propostas (daí o oportunismo). Uma oposição pobre, que não dá conta da complexa relação entre patrões e empregados, entre dondocas e trabalhadoras (nesse sentido, o depoimento da empregada doméstica à Folha foi mais direto ao ponto do que o filme – eis o primeiro parágrafo: "Quando você chama alguém de "secretária", como chamam no filme, você assume que é feio ser empregada doméstica. Eu gosto do termo porque é meu trabalho e não sou menos que ninguém por isso").

Quanto às outras críticas, prefiro ir por partes;

- "o texto não fala do filme"

Fala, sim. Pouco, mas fala. No mais, cito pelo menos quatro críticos que faziam constantemente a mesma coisa: André Labarthe, Sèrge Daney, Inácio Araujo e Jairo Ferreira. Existem outros, como o Robin Wood, por exemplo, que o faziam com menos frequência. O problema, então, não é esse. Pode-se falar bastante do filme sem falar, de fato, do filme.

- resume o facebook a uma esquerda hipotética

Não resumo. Eu me endereço a essa parcela específica do Facebook – de virtualmente justos – para criticar uma suposta adesão automática a um tema que se apresenta como de esquerda. Parcela específica, mas que soma muito mais do que seis gatos pingados.

- tem que pensar no filme e no público que vai deixar de ver o filme

Não, não tenho. Um crítico que pensa isso é, a meu ver, comprometido. Eu analiso o filme, seja qual for, de onde for. O curioso é que ninguém que eu tenha lido defende o filme pelo que ele tem de cinematográfico. Defendem a ideia, o dispositivo (palavra da moda), a pertinência. Esse é o ponto. A partir da ideia, que se alinha à esquerda, aprovariam qualquer coisa que tivesse sido feita, qualquer organização de imagens pela edição, por mais pobre que fosse. A ideia contaria mais do que a realização. É o fim da perspectiva crítica, porque o tema se sobrepõe ao cinema.

- hora errada para o teor da crítica

Talvez. Mas como disse, só percebi depois que o texto foi publicado. Ninguém pode ser condenado por isso.

- experiência estética

Junção precipitada de dois termos complexos. A ideia de estética, do belo, da ciência dos sentimentos, varia de autor para autor. Há quem possa ter uma boa experiência estética com Doméstica, claro. Mas estaria esse prazer associado a valores cinematográficos?  Penso que não. Mas não vou censurar quem pense o contrário. Censuro, sim, quem se apega ao tema. Devia ter escolhido outros termos, uma vez que a palavra "experiência" tem sua amplitude, "estética" tem outra, e "experiência estética" ainda outra.

A proposta

Existem críticos que aceitam a proposta de qualquer filme e julgam a partir da realização. Falam que deve-se julgar o filme pelo que ele se propõe. Renego (mas não desrespeito) esse pressuposto. Parto de um preceito cinematográfico, como a maior parte dos críticos que admiro (Jean Douchet, Jacques Lourcelles, Robin Wood…). É uma defesa de certo tipo de cinema, que pode ser mais ampla ou mais fechada, dependendo do crítico, e que é construída pela vivência de cada um. Um amigo crítico resumiu bem: "posso gostar do que é contrário ao que defendo, desde que seja do primeiro escalão, ao passo que gosto até um segundo escalão do que está de acordo com o que defendo".  Julgo já a partir da proposta. E uma proposta como a de Doméstica é, no mínimo, discutível.

O crítico de arte Clement Greenberg escreveu que "atribuir uma posição ou linha a um crítico é, de fato, querer tolher-lhe a liberdade". No mesmo parágrafo, acrescenta: "Você adquire um gosto não só pelo que é desconcertante, mas pela sensação de desconcerto". E tem razão. O importante, no caso, é que o crítico possa ser surpreendido por uma obra que não responde a seus preceitos. Desse modo, um crítico que admira Mizoguchi pode se entusiasmar com, por exemplo, Moscou, de Eduardo Coutinho, que de mizoguchiano não tem nada. Liberdade é fundamental.

Algumas considerações finais:

a) eu poderia falar a mesma coisa sobre o adesismo automático num texto sobre O Som ao Redor ou Trabalhar Cansa (com a diferença de que gosto desses dois filmes, e no caso encontraria razões cinematográficas para defendê-los – o que em Doméstica é mais difícil);

b) nunca recebi pressão alguma para detonar ou apoiar esse ou outro filme, em veículo algum;

c) há um bom tempo escrevo sobre o adesismo no cinema jovem brasileiro;

d) caso tivesse escrito sobre o filme quando passou em Tiradentes (fiz só uma menção a ele no balanço para o UOL), a crítica seria ainda mais dura – a revisão atenuou meu juízo negativo sobre o filme, e por esse motivo, entre outros, é calhorda a sugestão de que meu texto tenha algo a ver com a PEC;

e) circula por aí a ideia de que sou contra o cinema brasileiro. Errado. Para ficar só nos que estrearam no circuito comercial em 2013 e nos que estão para estrear em maio, posso citar, entre os que gosto, os seguintes filmes: O Som ao Redor, Super Nada, O Abismo Prateado, Na Carne e na Alma (estreou mesmo? não lembro), Segredos da Tribo, Francisco Brennand, Cores, Elena e O Que Se Move. Nenhum deles é especial. Um deles (Cores) é até malhado por muitos críticos que o viram. Sou contra o que considero mau cinema, seja feito aqui, seja no exterior.

Continua…

Sérgio Alpendre

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O texto inteiro da Taturana se encontra aqui, caso alguém se interesse:

http://revistataturana.com/2010/07/19/a-relevancia-de-mizoguchi/

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