Ano VII

Diário – 3: Matéria de Composição

quarta-feira jan 23, 2013

Diário Parte 3: Matéria de Composição

Matéria de Composição, o documentário de Pedro Aspahan sobre o processo criativo de três compositores para a trilha do mesmo vídeo experimental, poderia muito bem se chamar Matéria em Decomposição. Pois o trabalho é de mão dupla: enquanto cada músico escreve, compõe, ensaia e executa, o espectador do filme descontroi, observa as partes. E se esse mesmo espectador tiver alguma acumulo de música clássica – acúmulo sensível, não necessariamente teórico –, o documentário abre uma janela para, enquanto se assiste ao filme, acessar um cardápio musical acumulado na memória e imaginar como ele foi construído por seus autores.

Por baixo do visível interesse no processo de criação, o que expande o alcance do filme é o que ele permite pensar a respeito da interpretação humana do mundo. A dinâmica do longa: Aspahan fez um curta no qual filma a destruição de uma casa. Azulejos que se quebram, concreto derrubado, muro que cai: o que antes era um todo – a casa – torna-se um acumulado de partes – portas, paredes, tijolos, fechaduras, ferrolho.

A feitura das imagens que servem de base para a criação da trilha dos compositores não é neutra porque o cinema não é neutro. Linguagem mais que consolidada, existe uma carga de sentidos nas aparentemente banais escolhas de Aspahan. Um travelling filmando uma porta entreaberta é repleto de significados, assim como a queda em câmera lenta de um muro.

E mesmo para imagens já mediadas por uma ideia, já possuidoras de sentidos próprios, cada compositor propõe uma interpretação que resulta num sentido outro, que se distancia ou se aproxima do que as imagens sem trilha sugerem por si mesmas.

Nesse sentido, Matéria de Composição deixa de falar do que é específico da música para crescer, permitindo um questionamento mais a fundo: como se dá a interpretação humana para as coisas? Como funciona essa equação dialética entre “o que significa o que vejo” e “o significado do que vejo é fruto do que sou”?

Voltando ao que é específico da música no documentário de Aspahan, ora se tem uma afirmação da autoria, ora fica explícito o caldo comum de onde vem os compositores. O estilo da composição é marcado pelas formações dos artistas: o primeiro se baseia no som das coisas, o segundo na sinfonia das cordas e o terceiro num entendimento mais tradicionalista de música. Mesmo assim, apesar da embalagem distinta, as peças transitam muitas vezes em lugares parecidos: os espaços, os silêncios e acordes que sugerem no receptor uma sensação de indefinição, não uma afirmação sobre as coisas e sobre os sentimentos.

No geral, Aspahan foge de um filme que sobrevive apenas pela ilustração sonora, mostrando rigor ao filmar – e pode pagar o preço da rejeição, pois tal rigor implica bastante dedicação na apreciação. A consciência do que filmar se mostra nas diferentes abordagens da câmera para os compositores: desde o mergulho lúdico-sensorial ao silêncio em respeito a uma composição cerebral, racional, calculada – a apresentação do último compositor, um plano longo e silencioso, é a grande tradução desse apuro.

Todavia, há momentos que Matéria de Composição cai na mesma armadilha que Ventos de Valls, longa que abriu a competição da Mostra Aurora: indecisão em como filmar a cena que se desenrola pelo acaso. Sobram closes do ouvido, da mão que toca o instrumento, travellings desnecessariamente descritivos, enquadramentos bobos.

Ao contrário do filme de Lobato, tais momentos não abalam a coesão do documentário de Aspahan.

Heitor Augusto

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