Ano VII

Django Livre

sábado jan 19, 2013

Django Livre (Django Unchained, 2012), de Quentin Tarantino

Uma comédia dramática, com muitos toques de western spaghetti e blaxploitation, é o que Tarantino realiza com Django Livre, seu oitavo longa-metragem. Jamie Foxx é o escravo que acompanha o caçador de recompensas vivido por Christoph Waltz ao encalço de três irmãos que trabalham disfarçadamente para um senhor de escravos.  Os dois desenvolvem uma parceria, que não é bem-vista pelos branquelos do sul dos EUA (estamos num período anterior à Guerra Civil Americana), nem para os demais escravos. Juntos, eliminam uma centena de branquelos cruéis nos 160 minutos  de duração.

Ainda assim, Django Livre foi acusado de racista por Spike Lee, com o endosso de alguns críticos e jornalistas americanos. Para eles, a palavra "nigger", que aparece diversas vezes na boca de brancos e negros, seria um sinal de racismo, pois a história não teria preocupação com a realidade, logo, não havia a necessidade de reproduzir o tratamento ofensivo aos negros da época. Quando Pulp Fiction estreou, houve reclamações parecidas, mas em número bem menor, e o filme se passa nos anos 1990, quando usar a palavra "nigger" já era incriminadora. Ou seja, os críticos  e/ou jornalistas foram ultrapassados pelo excesso do politicamente correto.  Pois se há uma posição em Django Livre, essa posição é claramente antirracismo. E se há imagens impactantes e desagradáveis (a principal sendo a dos cachorros dilacerando um escravo que se recusava a lutar até a morte), é porque houve necessidade dramática, pois o filme estabelece uma clara relação entre elas e o desenvolvimento dos personagens. Se um filme ambientado numa época pré-abolição não pode retratar o absurdo da história, o que se quer? Que se apague o passado? O melhor mesmo é esquecermos essa acusação e irmos direto ao filme.

Django Livre dá prosseguimento à fase decadente que Tarantino havia começado com À Prova de Morte e continuado com Bastardos Inglórios. O díptico Kill Bill, espetáculo multi-referencial de inegável encanto, deveria ter expurgado essa febre alusiva do diretor, presente desde o primeiro longa. Infelizmente, fez o contrário: obrigou-o a estar sempre acorrentado a ela, como se fosse condição essencial para seu status de autor. Este novo filme é uma homenagem a Django, obra-prima de Sérgio Corbucci e uma das obras paradigmáticas do western spaghetti. Obviamente, é também a principal referência em Django Livre, pela música e ambientação ou sob forma de citações e brincadeiras. Em certa hora, por exemplo, Franco Nero, o Django de Corbucci, protagoniza uma brincadeira com o nome do personagem, após uma luta de mandingos.

Essas brincadeiras tarantinescas não ofendem ninguém, e existem aos montes em Django Livre. Suscitam, por outro lado, uma questão ética: como retratar a terrível violência que sofriam os negros no sul dos EUA do século 19 e fazer comédia disso na mesma sequência (às vezes na mesma cena ou no mesmo plano)? É possível misturar tais coisas? Roberto Benigni foi muito criticado por ter feito piada com o Holocausto, mas ele não foi tão incisivo quanto Tarantino (que o tempo todo tira sarro do susto dos brancos sulistas com um negro livre e audacioso). Jerry Lewis realizou um filme (nunca terminado e lançado) sobre um palhaço da Alemanha nazista que acompanha um grupo de crianças para a câmera de gás. Teria sido antiético? A questão na verdade é o tom. Lewis, autor de talento imensurável, provavelmente encontrou o tom adequado. Benigni é apenas bobo, e seu humor, frouxo. Tarantino trabalha no limite. E muita gente não lida com essa relativa audácia da mesma forma que lidaria se fosse feito por algum outro diretor. De minha parte, não me incomoda tanto o humor associado às atrocidades (mesmo porque na cena mais violenta, a do escravo sendo dilacerado pelos cães, não há humor, há gravidade e tensão nas medidas certas). Mas as babaquices que ele faz aqui e ali são mais nocivas ao filme. Há uma tentativa de mostrar esperteza, ironia, por vezes malandragem, que distorce a mescla de tons, entre o soturno e o paródico, e chama a atenção para si, quando o ideal seria invocar o questionamento (estamos rindo, mas é para rir?), ou mesmo a indignação pela barbárie de uma época anterior à Guerra Civil americana (o filme se passa em 1858-59). Tirando esses deslizes, Tarantino não é desrespeitoso em momento algum, nem mesmo quando zomba de um protótipo da futura Klu-Klux-Klan (organização que só passaria a existir em 1865), num momento digno de Monty Python (Mel Brooks também é referência, sobretudo no começo). E Django Livre não mostra nada que já não estivesse em Mandingo, ótimo filme dirigido por Richard Fleischer em 1975 que tem uma trama semelhante até certo ponto, ou em Raízes, minissérie televisiva de grande sucesso nos anos 1970.

Auto-crítica involuntária

Da mesma forma que À Prova de Morte e Bastardos Inglórios, Django Livre cai sensivelmente na segunda metade. Não é possível colocar a responsabilidade na ausência de sua montadora habitual Sally Menke, pois ela estava presente nos igualmente problemáticos filmes anteriores. A culpa é mesmo de Tarantino e de seu roteiro, da mania de complicar as coisas para provocar  a esperada catarse no final. Nada contra a catarse, mola-mestra de uma série de filmes, comerciais e autorais, bons e ruins. O problema mesmo é o tipo de estratégia usada por Tarantino. Com a intenção de complicar ao máximo o percurso dos heróis, abandonando assim a desnecessária verossimilhança, mas também o bom senso, o diretor praticamente pede que o espectador não pense, ou ignore construções prévias de personagens em favor de desenvolvimentos dramáticos arbitrários e um tanto confusos.

Na segunda metade do filme, totalmente dominada pelo antagonismo entre a dupla formada pelo Dr. Schultz (Christoph Waltz) e Django (Jamie Foxx) e o estranho casal formado por Stephen (Samuel L. Jackson) e o cruel senhor de escravos Calvin Candie (Leonardo DiCaprio – cuja atuação, como o próprio filme de Tarantino, transita entre o sublime e o grosseiro), há um claro exemplo de como essa estratégia pode sair pela culatra. Schultz e Django se disfarçam de compradores de mandingos (escravos treinados para lutar entre si até a morte, para o prazer de seus senhores) com uma proposta irrecusável para atrair a atenção de Calvin. O que querem, na verdade, é comprar a esposa de Django, uma escrava com marca de fugitiva e cicatrizes nas costas que não custaria muito caro. Na infância, essa esposa teria recebido o nome de Brunhilde de sua patroa alemã, aprendendo também a língua germânica para servir de interlocutora. Tal ideia teria sido colocada unicamente para homenagear o Mandingo de Richard Fleischer? Com Tarantino, é bem possível. É um desvio considerável na rota dos heróis em direção à correção de uma grande injustiça. Um desvio que, dada a construção dos dois personagens, dificilmente eles fariam. Dr. Schultz, principalmente, havia se mostrado um brilhante estrategista. Tal ideia não condiz com sua inteligência e perspicácia.

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Antes de prosseguirmos, um aviso. Quem lê críticas antes de ver os respectivos filmes deve estar preparado para saber de informações que podem tirar o efeito surpresa da narrativa. O leitor que lê somente para saber o que vai ver no fim de semana, contudo, se eventualmente cair aqui, deve se despedir do texto neste ponto exato.

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Ao descobrir o plano da dupla afro-alemã, a reação de Calvin é raivosa, de quem se sentiu traído, e nos dá a entender que caso o Dr. Schultz fosse sozinho tentar comprar uma escrava que falava alemão (ele, afinal, teria motivos para querê-la), tudo se resolveria sem maiores traumas. Esse entendimento (que Tarantino quis evitar com a sugestão de Stephen de que ele não chamaria a atenção de Calvin caso fizesse somente a proposta real) persiste, prejudicando todo o desenrolar da sequência, apesar de alguns diálogos primorosos, e da ideia de duelo de argumentos entre Calvin e Schultz, vencida por este último com um golpe fatal depois de um ultimato. O personagem de DiCaprio serve como uma crítica involuntária da estratégia de Tarantino, personificada em Schultz e no tipo de interpretação cool de Christoph Waltz; um comentário sobre a mania de contornar o que é simples e direto, e geralmente mais eficaz.

Calvin é uma figura interessante na imensa galeria de personagens tarantinescos. Há um monólogo interessante feito por ele em seu momento de fúria, que pode até ser interpretado de modo errado, mas é perfeitamente compreensível vindo de um escravagista convicto como ele. Após colocar na mesa de jantar o crânio do velho escravo que cuidou de seus antepassados, ele se pergunta porque o velho nunca enfiou a navalha na garganta de seu avô, ou de seu pai, enquanto os barbeava? A resposta, para ele, é: submissão. Mas está claro que  a resposta certa é: medo. E dessa maneira o personagem ecoa o Amsterdã de Gangues de Nova York, também interpretado por DiCaprio. Numa história que se passa quase na mesma época, Amsterdã ouviu de Bill the Butcher, o grande vilão do filme de Scorsese, que seu poder é sustentado pelo medo. Seria uma correção á fala de Calvin sobre a submissão dos negros.

Entre as diversas conexões com filmes e diretores, e apesar das inúmeras homenagens a Sérgio Leone (seu diretor preferido), é com o diretor de Taxi Driver  que Tarantino mais se afina. O que comprova a relação mestre-discípulo, já perceptível em Cães de Aluguel e Pulp Fiction, e na maneira como ambos os diretores usam a música em seus filmes. Django Livre, afinal, é um bom filme problemático, mas sua trilha sonora é uma delícia para os ouvidos.

Sérgio Alpendre

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