Ano VII

O Signo do Caos

terça-feira dez 18, 2012

 

O Signo do Caos (2005), de Rogério Sganzerla

Um jazz insano. Negativos que queimam em frente a uma estátua de uma deusa hindu, sob os olhares vigilantes de uma enorme lua cheia e um papagaio que abençoa o ritual dizendo “Amém”. O censor, o responsável pelo assassinato, profere sentenças como “veto ad eternum!!”. Todos esses elementos se revezam na tela em imagens de curta duração em um esquema repetitivo que evolui em termos narrativos, mas que na verdade só reitera que o estado inicial do filme permanece inalterado ao final (o sentimento de mundo). Uma das principais figuras geométricas do filme é o círculo (a lua, entre outros) e essa figura é desenhada também pela montagem circular das imagens, que na falta de termos mais justos poderíamos dizer que é toda ela “repetitiva com progressão”. Em resumo, quase um esboço de uma nova forma muito diferente das mais tradicionais, que se aplica em variar a velocidade com a lentidão e também em fazer de algumas imagens verdadeiros pontos de exclamação ao modo de estilhaços. Um excesso organizado com muito talento e tenacidade.     

O final vertiginoso do último filme da carreira de Sganzerla mostra que se por um lado existe a alegria do fazer cinematográfico, este de certa forma sucumbe frente a um certo estado das coisas muito negativo e que é imutável. Um paradoxo total observarmos o contraste que existe entre o filme e o seu tema. A amargura presente na visão de mundo é atravessada pelo escárnio, dando forma a um filme completamente sarcástico quanto a seu próprio niilismo sonhador. É um humor corrosivo, mas que apenas dá forma para aquilo que já está em ruínas. Corroer, rindo, tudo aquilo que nos corrompe. Uma mistura extremamente complexa de plenitude e queda. Não deixa de ser uma coincidência lógica e natural o fato do último filme deste artista ter terminado com uma cens de negativos queimando. O filme é apagado do mundo, posto em esquecimento total. 

A lógica assim o manda porque o filme inventivo é um ato mágico de resistência em um mundo já desencantado ad eternum. Porém estas imagens artisticamente preciosas estão fadadas a sucumbir diante de um mero censor. Como um único imbecil pode impedir a existência potencialmente eterna no mundo de uma grande obra de arte? Como uma única pessoa pode privar  outras tantas do acesso aos benefícios e ensinamentos de tal obra? Uma completa desproporção de poder, uma completa injustiça o fato de um homem grosseiro e mercenário ter o poder de destruir uma obra de arte que é resultado de uma genialidade máxima. Claro que todos os personagens e elementos são metafóricos, então podemos tomar o personagem do censor, chamado Amnésio, como a encarnação de uma mentalidade dominante, de séculos de tradição de uma cultura ocidental inculta, que por sua vez tem seus mecanismos para fazer cair no esquecimento qualquer tentativa de resistência ou subversão de suas regras e de seus códigos.

O filme então é um verdadeiro petardo audiovisual que simula e passa o efeito de caos, mas que certamente é resultado de um imenso rigor e precisão (não é pelo fato de não conhecermos alguma língua que ela é caótica, ela apenas soa caótica enquanto não a compreendemos). Então O Signo do Caos é programático nesse sentido: pleiteia a desestabilização da sensibilidade do espectador como conseqüência, e não como uma finalidade em si. O filme não é uma desmanche de códigos, é um novo código. Assim ele não cai nas armadilhas que às vezes assolam o cinema brasileiro contemporâneo. Alguns desses perigos: “feito de qualquer jeito para incorporar na linguagem a precariedade brasileira”, o preguiçoso e fácil demais “ode ao erro” uma exaltação da “arte masoquista consigo mesma e com a platéia”. Não é nada disso. Estamos falando de um gênio, estamos falando de Rogério Sganzerla.

O poder alucinante do discurso e do ritmo é algo até então nunca alcançado no cinema brasileiro de 20 anos pra cá. A premissa narrativa é minimal, trata-se de um filme antigo que Orson Welles veio fazer no Brasil (“It’s All True”) mas que nunca foi concluído. Existem poucas cenas longuíssimas, se bem que até mesmo o conceito de “cena” aqui é relativizado, pois os espaços são fragmentados ao extremo. Chega-se até mesmo ao ponto de uma mesma cena conter em si vários espaços diferente, que são aproximados em um novo espaço unificador criado pela montagem. Além de unificar aquilo que é heterogêneo (os diferente espaços, diferentes tonalidades de cor e Preto e Branco, diferentes ritmos musicais, diferentes camadas de tempo, entre outros) a montagem se empenha em colocar as coisas em confronto. O censor, por exemplo, nunca é unanimidade total, pois sempre há alguém contrariando suas idéias. O censor diz sobre o filme de Orson Welles “Isso é um absurdo!”, enquanto outro rebate “Com que direito você vai usar o seu poder para vetar uma obra de arte?”. A complexidade vem do fato de todos os personagens serem ridículos, e das situações serem tratadas com muito humor, com muitas dublagens e alguns diálogos fora de sincronismo labial (em uma edição de som extremamente criativa de Ricardo Reis, o Chuí).

Não há heróis nessa triste história. Existem apenas as condições ásperas e quase totalmente estéreis para que uma grande obra de arte floresça por essas bandas. E mesmo habitando este cenário desolador do qual ele também se coloca como um filho não por opção, Rogério Sganzerla conseguiu realizar uma obra que é muito grande, culminando em um filme sem par no cinema brasileiro contemporâneo. Como diz o censor, “passou dos limites da ousadia”, sem ousar por ousar (ou pra chocar ou sei lá o quê), mas sim ousando como um ato de resistência por meio de imagens e sons. Um filme jovem de um cineasta maduro, que não se limita a embaralhar e a distorcer, mas dá aquele passo além que é a tentativa de criação de algo novo.      

Fernando Watanabe

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