Ano VII

Alma Corsária

terça-feira dez 18, 2012

 

Alma Corsária (1993), de Carlos Reichenbach

A estrutura é simples, mas atravessada por linhas caóticas: dois homens fazem uma noite de autógrafos do livro de poesia que escreveram a quatro mãos. Do evento desprendem-se situações pitorescas e lembranças sentimentais, numa espécie de Amarcord do cinema de invenção.

Mais do que qualquer outro filme de Reichenbach dos últimos vinte anos, o que norteia Alma Corsária é o princípio da liberdade irrestrita. Liberdade para passear pelos tempos e lugares ao sabor da memória e sem se preocupar com a verossimilhança cronológica. Liberdade para usar uma anã dançarina como passagem entre dois tempos distantes. Liberdade, acima de tudo, para dar um Oscar para Samuel Fuller sendo que este se encontra completamente deslocado (porque envelhecido) da época em que a história estava na ocasião, 1965. Em suma: liberdade para passear por diversas dimensões artísticas e históricas e ser desconcertantemente imperfeito.

Para se entender essa liberdade, é necessário atentar para a época em que o filme foi feito. 1993, três anos depois do assassinato da Embrafilme pelo governo Collor, seis anos depois do longa anterior de Reichenbach, Anjos do Arrabalde. Não era fácil fazer filmes nessa época, e Alma Corsária chegou antes da chamada retomada, iniciada e confirmada pelo sucesso de Carlota Joaquina (1995), de Carla Camuratti. Não havia aportes de dinheiro, e quem quisesse filmar tinha de meter a mão no bolso, ou ter o dom para encontrar um bom mecenas.

Reichenbach respondeu a esse contexto aprisionador com parcos recursos e uma narrativa libertária e afetiva, em que os amigos e acontecimentos de sua vida fundem-se em personagens sonhadores, efusivos, melancólicos. Há o presente, filmado com exagero e pendor ao brega. Há os flashbacks que contam parte das aventuras dois dois escritores. Há sobretudo a incrível presença de Bertrand Duarte, um Rimbaud perdido nas pensões paulistanas e pastelarias chinesas, um Rubens de Falco cuja nobreza de espírito está refletida no olhar de quem nasceu para vida efêmera e intensa. E planos antológicos como aquele em que Anésia (Andrea Richa) flagra seu falso noivo e o pai fumando no alpendre.

Todo esse momento do falso noivo é de sublimação de uma ideia de poesia em cinema, um primor de encenação e delicadeza: a bela música embala o casal que se apaixona sem saber, que dança no alpendre e na praça, deixando-se transportar pela melodia encantadora; o contraplano flagra aquela que está interessada no falso noivo, e sabe da farsa, mas não pode se declarar; os olhares da família testemunham a representação do noivado fictício como quem vê um truque barato. Filmada na pacata cidade Dois Córregos, a sequência revela um diretor inspirado pela paz e pela beleza da região (no interior do estado de São Paulo). É a melhor sequência do cinema brasileiro dos últimos vinte anos. Assim como Alma Corsária é a obra-prima derradeira de um mestre do cinema referencial.

Sérgio Alpendre

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