Ano VII

Cinema e literatura nos últimos 20 anos

terça-feira dez 18, 2012

Cinema e Literatura nos últimos 20 anos: outro tempo, outras formas de produzir, outras formas de narrar.

Uma questão que deve ser pensada quando se analisa a relação literatura e cinema nos últimos 20 anos, e que afeta todo o cinema mundial, tem a ver com as novas formas de produção possibilitadas pelo digital e com as novas formas de pensar o mundo contemporâneo.

Para trabalhar a questão, retomo aqui alguns pontos que tratei no artigo “Cinema e Literatura: a palavra e a imagem no cinema contemporâneo – itinerários possíveis”, publicado no livro Artes, Museu e Educação, da editora CRV, em 2012.

Escrevi naquela época que assim como toda uma geração de cinéfilos foi formada nas décadas de 80 e 90 graças à explosão do VHS e à multiplicação de locadoras, que desempenharam o mesmo papel das cinematecas e cineclubes para as gerações anteriores, uma geração mais recente de cinéfilos se formou graças à tecnologia digital e internet, graças ao armazenamento e compartilhamento de filmes, criando gigantescas coleções particulares que, muitas vezes, estão à altura do acervo de importantes cinematecas. Fato que além de promover uma circulação desses filmes como jamais ocorreu, possibilitou que cineastas ignorados pelo circuito comercial, e muitas vezes também pelo alternativo, tivessem seus filmes novamente colocados em discussão. Uso o termo discussão porque além da circulação, a internet possibilitou também que fossem criados novos espaços para a reflexão destes filmes, caso das listas de discussão via troca de e-mails, sites e mais recentemente blogs e comunidades sociais, formando, além de uma nova geração de cinéfilos, uma nova geração de críticos e pesquisadores de cinema.

Pois bem, além do cinéfilo e do crítico, o digital possibilitou também que surgisse uma nova geração de realizadores, graças à evolução constante de câmeras, herdeiras também das dinoussauras e pesadas câmeras domesticas VHS ou Super VHS, U Matic, bem como de programas para a montagem desses novos filmes. Nesse cenário, e ao longo das últimas décadas, passou então a existir uma produção jovem e de vanguarda que, com equipes menores e, muitas vezes, dentro de uma estrutura coletiva de produção, passou a trabalhar novas formas narrativas, visto que o filme produzido em um sistema quase doméstico e, portanto, fora da lógica industrial anterior não precisava, necessariamente, seguir padrões narrativos convencionais para se pagar. A liberdade de produção resultou em autonomia formal, e a autonomia formal indica uma nova relação com as estruturas narrativas anteriores e com a relação imagem e palavra que funda a linguagem cinematográfica.

O que se instalou, portanto, à margem do esquema industrial tradicional, foi um modelo paralelo, alternativo, complementar, só que, diferentemente de época anteriores nas quais isso também ocorreu, como, por exemplo, com o Super 8, agora essa geração possui uma estrutura muito maior em termos de organização, a cadeia produção-exibição-reflexão, assim como uma maior possibilidade de inserção ou convivência com o modelo industrial tradicional.

Essa distância menor entre os dois modelos pode ser observada pela premiação de filmes feitos nesse sistema coletivo, quase de guerrilha, em festivais tradicionais como o Festival de Brasília, que em 2011 premiou Céu sobre os ombros, de Sérgio Borges, e em 2012, Eles Voltam de Marcelo Lordello; pela importância cada dia maior de um festival como o de Tiradentes; pela criação de novos espaços de exibição desses filmes, caso entre outros da Semana dos Realizadores, e também pelo surgimento de distribuidoras voltadas à exibição dessas obras, caso da Vitrine Filmes.

O que mais me interessa, para não me aprofundar na questão da tecnologia, já explorada no artigo citado, é apontar como essa nova forma de fazer cinema, mais barato e coletivo, dentro de uma lógica que Cezar Migliorin chamou de pós-industrial, afetou na feitura dos filmes, eclodindo a noção de autoria, gerando uma possibilidade infinitamente maior de experimentação narrativa e possibilitando também a amarração do filme por outra lógica estruturante não tão refém da cadeia de montagem do cinema industrial e dos nexos causais que estruturam as narrativas tradicionais as quais o cinema esteve – e boa parte dele ainda está – tão vinculado.

Tal possibilidade técnica que gera este outro tipo de narrativa está também atrelada a um contexto histórico. Vejamos como, e, para isso, volto ao artigo já mencionado.

A tal da pós-modernidade

Podemos pensar, usando uma expressão de Georg Lukács, que a “transmutação dos pontos de orientação transcendentais” que configura a passagem da modernidade a pós-modernidade, tal qual definida por Lyottard, é dada pela incredulidade em relação às grandes narrativas, pela perda da crença em visões totalizantes da história e suas regras de conduta política e ética.          Além disso, podemos pensar, como aponta Gianni Vattimo (1992) no ensaio “Pós-moderno: uma sociedade transparente?”, que a crise da ideia de história traz consigo a crise da ideia de progresso – sem um curso unitário dos acontecimentos humanos, também não se poderá sustentar que eles avançam para um fim, “que realizam um plano racional de melhoramento, educação, emancipação” (1992, p.9) –, bem como a crise de um certo ideal de homem, de um homem próximo ao modelo iluminista do homem europeu.

Neste cenário, Vattimo (1992, p.10) afirma que o que dá sentido ao termo pós-moderno é a sociedade de comunicação generalizada, que tem como característica não a formação de uma sociedade mais transparente, mais consciente de si, ou mais iluminada, mas “uma sociedade mais complexa, até caótica”. E é neste relativo caos que vai residir as esperanças, de Vattimo, de uma emancipação. Nesta sociedade de comunicação generalizada, afirma Vattimo (1992, p.10), “tudo, e de qualquer maneira se torna objeto da comunicação” e a “intensificação das possibilidades de informação sobre a realidade nos seus mais variados aspectos torna cada vez menos concebível a própria ideia de uma realidade” (p. 13).

Mas, para Vattimo, a perda do sentido de realidade dada à multiplicação das imagens do mundo não é uma grande perda, pois ela ainda que dê conta de um desenraizamento, possibilita a libertação das diferenças, e por isso o caos é emancipador, pois promove o que Vattimo vai chamar de uma “multiplicidade de racionalidades locais”, minorias étnicas, sexuais, religiosas, culturais ou estéticas.

Nesse sentido, o cinema contemporâneo da pós-modernidade é também um cinema marcado por essa multiplicidade de racionalidades locais, sobretudo, estéticas. E devemos pensar em multiplicidade tanto na esfera da produção – o digital e o pós-industrial, como vimos, possibilitam essa explosão da autoria –, como da representação destas multiplicidades de racionalidades locais do ponto de vista dramatúrgico, ou seja, destas personagens em cena. Aprofundemos a primeira hipótese.

A explosão na produção, gerada pela facilidade de produzir em relação à décadas passadas, tem tirado o sono dos curadores de festivais, surpreendidos, cada dia mais, com avalanches e avalanches de filmes tão logo termina o prazo de inscrição. Obras realizadas nos mais diferentes formatos e trabalhando com as mais diversas formas e conteúdos surgem de diversas partes do país. Muitas destas, realizadas por coletivos formados em universidades ou por grupos de amigos.

Com relação à possibilidade de expressão, hoje bastante facilitada pela internet e pela produção digital, ela não é localizada somente na produção de filmes. Na reflexão e recepção destes também ocorre o mesmo processo. Existe na internet uma infinidade de blogs e sites sobre cinema, fato similar a outras áreas, e qualquer pessoa em redes sociais ou em comentários postados em blogs ou sites pode opinar, ainda que sua opinião às vezes não acrescente nada à discussão ou, ainda, o que é muito comum, sirva apenas à necessidade dessa pessoa, muitas vezes até se servindo do anonimato, o que parece paradoxal, delimitar terreno para mostrar que existe. Não vejo muita diferença, nesse sentido, em relação às pessoas que escrevem seu nome em banheiros públicos ou em outros lugares.

Essa multiplicidade de racionalidades locais afeta ainda a recepção com a criação de inúmeros canais nos quais os filmes feitos nos mais diferentes formatos, do celular à bitola 35 mm, podem ser vistos, caso mais famoso é o do You Tube, dos porta-curtas e do Vimeo. Além destes hospedeiros, são inúmeros os mecanismos de divulgação destes trabalhos, caso de redes sociais como o twitter, facebook, Orkut etc.

De uma forma ou outra, a ideia de uma comunicação generalizada com a explosão da possibilidade de se fazer ouvir, ainda que poucos ouçam de fato, leva a uma explosão de formas e estas formas partem de minorias antes silenciadas, como aponta Vattimo. E se, como ele afirma, o esvaziamento das grandes narrativas leva à crise de “um certo ideal de homem, de um homem próximo ao modelo iluminista do homem europeu”, o mesmo ocorre com a representação. Ainda que boa parte dessa produção cinematográfica contemporânea, a parte legitimada por festivais e críticas pelo menos, faça certa referência, e até reverência, à herança cinematográfica e literária, esses modelos deixam de ser unânimes, sendo que em muitos casos, até pela juventude do realizador, nota-se até um purismo na linguagem e no tema tratado.

Vattimo fecha a sua análise dizendo que “viver neste mundo múltiplo significa fazer experiência da liberdade como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento”. Pertença pela possibilidade de falar e ouvir ecoar o seu “dialeto” e desenraizamento pela nostalgia dos horizontes fechados, tranquilizadores, típico das grandes narrativas, que deixaram de dar conta – se é que um dia deram de fato – da realidade.

Chegando neste ponto, podemos, finalmente, aventar algumas hipóteses de como o cinema contemporâneo recente dá conta destas questões ao trabalhar a palavra e a imagem.

Com o esgarçamento da noção de realidade e o brotar da ideia de realidades é fácil perceber nos filmes a construção de uma dramaturgia mais rarefeita, sem um sentido único, linear, emancipador, promovido por uma lógica estruturadora e temporal fundada na articulação de nexos causais ou episódios deflagradores de ações posteriores amarrados no princípio de causa e consequência. Do ponto de vista da construção da imagem, o que temos são planos longos, dilatados ao extremo.

Esse sentimento de desenraizamento em relação a uma realidade estável, e de pertença, a realidades fraturadas, simultâneos, vão levar a essa dramaturgia rarefeita, oscilante, na qual temos esse outro homem, em outro tipo de ação. Não mais um agir racional instado a um fim claro, mas a um vagar, ou até a apatia – apatia feliz como descreveu o professor e crítico Cléber Eduardo quando entrevistado pela Revista Filme Cultura –, que se configura também pela desconexão entre passado, presente e futuro, para dar conta, fragmentariamente, do hoje mais imediato. Este tipo de estrutura dramatúrgica aparece, com diferença, é claro, em diversos filmes. Vários poderiam ser citados, mas cito dois que dentro da lógica de mercado, de produção e exibição, se encontram em polos bem diferentes, para não dizer opostos: o cearense Estrada para Ythaca (Brasil, 2010) de Guto Parente, Pedro Diógenes, Ricardo e Luiz Pretti, um dos filmes mais interessantes feitos no Brasil nos últimos anos, e Árvore da Vida (EUA, 2011), filme do cineasta norte-americano Terence Malick, premiado no Festival de Cannes em 2011 e que tem Brad Pitt e Sean Penn no elenco.  

Esta dramaturgia, menos ancorada na força da realidade, leva um determinado cinema, se não à crise que o romance sentiu na virada do século XIX para o XX, a um caminho muito mais próximo deste no que diz respeito à subjetivação em oposição ao narrar objetivamente a realidade, leva também a experimentações radicais como a do fluxo de consciência e a do monólogo interior. Cito novamente, como exemplo, Árvore da Vida de Terence Malick, e não só pelo fato de o filme ser bastante recente, mas porque a estruturação deste – e Malick sempre procurou caminhos diferentes em relação aos demais cineastas hollywoodianos – me parece muito similar à buscada por Proust na literatura, com a construção da memória, mas evocadas, no caso do filme, por um ponto irradiador do foco narrativo quase invisível, e embaralhando todas as coordenadas temporais.

Essa busca maior pela subjetividade pode ser vista também em diversos filmes brasileiros nos quais a afirmação de um pertencimento em confronto com o desenraizamento vai gerar a oscilação contínua explicitada por Vattimo ao explicar o pós-modernismo. Os exemplos são variados, mas poderíamos elencar os cinco filmes escolhidos pela Mostra “Cinema Brasileiro anos 2000 – 10 Questões”, realizada pela Revista Cinética, que de diferentes maneiras dão conta desta subjetividade: Nome Próprio (Brasil, 2007), de Murillo Salles, Pan Cinema Permanente (Brasil, 2007), de Carlos Nader, Eu me Lembro (Brasil, 2005), de Edgar Navarro, Dias de Nietzsche em Turim (Brasil, 2001), de Júlio Bressane e Tropa de Elite (Brasil, 2007), de Carlos Padilha.

Outra característica marcante desta produção contemporânea marcada por novas formas de produção e pela pós-modernidade é a erosão da fronteira entre ficção e documentário, entre representação e realidade. Isso ocorre de maneira tão marcante em certos filmes que é cada dia mais complicado classificá-los como ficção ou documentário. Exemplos óbvios neste sentido são os filmes Serra da Desordem (Brasil, 2006) de Andrea Tonacci e os filmes recentes de Eduardo Coutinho, Jogo de Cena (Brasil, 2007) e Moscou (Brasil, 2009).

Também neste limite, mas chegando pelo lado oposto, podemos colocar a produção mais recente do cineasta português Pedro Costa, sobretudo, Juventude em Marcha (Portugal, 2006). O cineasta graças à possibilidade de trabalhar com equipamentos mais leves e equipes reduzidas consegue em seus filmes retratar o cotidiano de imigrantes africanos em bairros pobres de Portugal com uma cumplicidade, realismo e lirismo que jamais seria conquistada com o monstruoso, invasivo e gigantesco aparato de um set de filmagem industrial. Estando ao lado destes imigrantes de fato e co-produzindo com estas pessoas, personagens-atores, seus filmes, Pedro Costa constrói e desconstrói a realidade, faz ficção e documentário ao mesmo tempo e no mesmo plano, tornando as duas coisas uma só. Um paralelo possível a este cinema no Brasil, diferente, obviamente, em termos estéticos, mas parecido pela forma de produção é o trabalho de Adirley Queiroz na cidade satélite de Ceilândia no Distrito Federal com o excepcional A Cidade é um só (2011).

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Chapecó SC: Argos Editora, 2009.

LUKACS, Georg. A Teoria do Romance. São Paulo: Editora Duas Cidades / Editora 34, 2000.

LYOTARD, Jean François. A Condição pós-moderna. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2002.

MIGLIORIN, Cesar. “Por um cinema pós-industrial. Notas para um debate”. Publicado na revista eletrônica Cinética. www.revistacinetica.com.br. Disponível em: < http://www.revistacinetica.com.br/cinemaposindustrial.htm>. Acesso em: 30 jul. 2011.

VATTIMO, Gianni. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

ZAMBERLAN, C. A. Cinema e Literatura: a palavra e a imagem no cinema contemporâneo – itinerários possíveis. In: Janina Sanches; Marcos Ferreira-Santos; Rogério Almeida. (Org.). Artes, Museu e Educação. 1ªed.Curitiba: Editora CRV, 2012, v. 1, p. 121-135.

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