Ano VII

Madame Satã

sexta-feira dez 14, 2012

Madame Satã (2002), Karim Aïnouz

Tão renegado pelo cinema brasileiro da Retomada, o corpo é o motor do primeiro (e melhor) longa de Karim Aïnouz, Madame Satã. É nos gestos, nas pernadas, no beijo, no encolhimento ou na expansão que João Francisco, lindamente vivido por Lázaro Ramos, mostra-se presente no mundo.

Uma presença que não é celebrada, nostálgica ou idealizada. João Francisco, visto pelo filme antes de se tornar um mito na Lapa dos anos 1940, causa a tensão constante da relação do “eu no mundo”. Ramos lhe empresta um corpo potente, que age e explode tanto o feminino quanto o masculino.

João Francisco é a madame e o satã, o lúdico e o agressivo, a maciez e a violência, a poesia e o realismo. Marginal, recusa-se a manter-se nessa condição: obriga os que estão no centro, os senhores cidadãos, a tomarem conhecimento de sua existência. Por isso, uma das cenas mais bonitas é a da briga na boate que só aceita “gente de bem”. Por não dominar o verbo, João Francisco fala com o corpo.

Em Madame Satã, Aïnouz investe nas questões do masculino que já vinha investigando nos curtas desde Seams (1993). Um filme de enfrentamento político com raro equilíbrio na dramaturgia. Nem áspero e verborrágico como Maldita Coincidência, de Sergio Bianchi, nem um cinema sensorial, pictórico e manso, que se espalhou na produção brasileira na segunda metade da última década.

Com a câmera na mão, o fotógrafo Walter Carvalho desenha um personagem cujo domínio do espaço potencializa sua força. Sem cair nas armadilhas do ultrarrealismo, o filme vai à canção popular para ilustrar a essência do personagem. Não à toa, ao entoar Aurora, Madame Satã entra num frenesi contagiante.

Pois é assim que o filme comunica: por meio do contágio. Sem, porém, perder de vista que se trata de um personagem em ação no mundo, de dimensões políticas.

Heitor Augusto

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