Ano VII

A fisicalidade e a abstração do corpo no cinema de Beto Brant

sábado dez 15, 2012

A fisicalidade e a abstração do corpo no cinema de Beto Brant

Na reflexão sobre a trajetória de um artista, a tendência crítica mais comum – no caso do cinema, pelo menos desde a ascensão dos Cahiers du Cinema nos anos de 1950 e 1960 – é encontrar elementos coincidentes dentro da obra em questão, de modo a identificar aquilo que, repetido ou desenvolvido mais e mais, torna uno o corpo criativo deste ou daquele criador. Alguns realizadores, porém, não apenas renegam a tentativa de serem enquadrados num universo característico específico como parecem querer, dentro de sua própria caminhada, sabotar seus rumos e daqueles que os acompanham trabalho a trabalho, obrigando o crítico a estar sempre renovando e burilando o pensamento em torno daquela obra, quanto mais complexa e distante da “caixinha autoral” ela se torna.

Eis o caso de Beto Brant, diretor emblemático nos últimos 15 anos de produção cinematográfica brasileira, nome que moldou para si uma aura bastante notável e, quase sempre, surpreendente e inesperada. Pegue-se, apenas como exemplo inicial, o primeiro e o último longas-metragens de Brant. De um lado, no já distante 1997 (quando o cinema no país voltava a caminhar depois da debacle proporcionada por Fernando Collor), temos Os Matadores, com sua atmosfera, ritmo e temática diretamente ligados ao gênero policial/noir; do outro, em meados de 2011, chega-nos Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, filme de estranheza singular que ora se sustenta no drama romântico-erótico-exótico, ora se aproxima de um pesadelo, ora dialoga com o panfletarismo sociologizante relativo ao desmatamento na Amazônia.

A dificuldade em se achar um palavreado claro e objetivo para definir Eu Receberia… – em contraponto à facilidade com que se caracteriza Os Matadores – é sintomática do quanto o cinema de Beto Brant não se conteve em estar no mesmo universo estético, narrativo e temático. Há diversas rupturas identificáveis a cada novo projeto. Seria possível, na verdade, apontar mesmo “blocos autorais”, fazendo com que a obra de Brant tenha reentrâncias em si mesma, ao mesmo tempo em que aperta e afrouxa o parafuso da inquietação artística sem jamais se permitir as típicas concessões de quem se estabeleceu e tende a se repetir para garantir a manutenção de algum status quo.

Seria bastante oportuno a Beto Brant, por exemplo, aproveitar o impacto imenso de O Invasor (2001) e nele se sustentar dali adiante. Não apenas por este filme em si, mas pela bem-sucedida trajetória crítica de seus dois anteriores, Os Matadores e Ação Entre Amigos (1998), ambos já sinalizadores de um diretor em constante evolução e cuja atenção estava no escopo social e urbano de personagens moralmente ambíguos e, em alguns casos, envolvidos em situações relacionados a traição e crime. O Invasor coroou a abordagem desse universo (muito ajudado pelos roteiros do escritor Marçal Aquino, parceiro fundamental de Brant), complexificando o tipo de relação ensaiada anteriormente e transformando o choque entre a classe média e a periferia num elemento esteticamente arrebatador – a presença (física mesmo) de Paulo Miklos como o mercenário que toma conta da vida de seus contratantes é o emblema máximo do procedimento. O que antes eram exercícios de gênero muito evidentes agora se tornava também intervenção político-social – sem a necessidade de Brant abandonar o universo da bandidagem e da violência no qual transitava.

Em seguida, porém, Brant muda o olhar – ou, pelo menos, a maneira de olhar. Faz Crime Delicado (2005), filme protagonizado por um crítico teatral, sem bandidos (ao menos na acepção mais típica) e ambientado em apartamentos, bares, teatros, ateliês e redações de jornal de uma cidade efervescente em cultura. De repente, o cinema de Beto Brant não mais parece se atentar a uma história propriamente dita: se antes os roteiros de Aquino trabalhavam com transparentes evoluções narrativas, nas quais uma situação apresentada iria necessariamente reverberar na situação seguinte, culminando em algum tipo de clímax, em Crime Delicado isso não acontece de maneira tão clara. Na verdade, O Invasor já trazia certo dispositivo enganador, pelo qual parecíamos assistir a uma “trama” quando, de fato, acompanhávamos “situações”. Mas, em Crime Delicado, a coisa se radicaliza a ponto de implodir quaisquer expectativas de quem espera que os rumos do protagonista sejam tradicionalmente apresentados.

Quando falamos acima que a maneira de olhar de Beto Brant talvez tenha se modificado em Crime Delicado, a expressão pode ser legitimada empiricamente. Basta pensar nos diretores de fotografia com quem o cineasta trabalha nessa primeira fase. Os dois primeiros filmes, muito mais calcados na evolução do roteiro e de como fazer com que a história caminhe da maneira mais fluida possível, têm câmera de Marcelo Durst. A funcionalidade dos planos, nos dois longas, sempre está a cargo da clareza narrativa, em roteiros caracterizados por idas e vindas temporais. A questão é menos de entendimento da trama do que de consistência visual daquilo que se acompanha. Basta perceber as mudanças de textura e cor nas passagens entre passado e presente, especialmente no caso de Ação Entre Amigos, no qual os flashbacks são ambientados nos anos 1970, auge das lutas guerrilheiras contra a ditadura militar. Como diretor e artífice dos filmes, Brant está claramente pautado em se fazer entender naquilo que narra enquanto condutor das ações.

O Invasor fica numa zona transitória, entre a narrativa igualmente transparente e o estranhamento constante dos rumos e voltas que o filme apresenta. A fotografia, desta vez, é de Toca Seabra, que se utiliza de uma textura de grãos que continuamente parecem representar o colapso pelo qual passa o personagem central do filme, vivido por Marco Ricca. Se especialmente em Os Matadores Brant já demonstrava a atenção e o rigor na presentificação máxima de determinados momentos, retirando elipses para estender a ação de instantes-chave (Murilo Benício treinando no banheiro a melhor forma de sacar o revólver; a espera de Chico Diaz no hotel; a conversa com a prostituta no estacionamento), em O Invasor essa maneira de mostrar os personagens é o cerne do filme. Quase toda cena é filmada como um instante ímpar, único, indefinível, que poderia existir por si só, descolado do restante, mas que guarda algum sentido amplo justamente no contato com a cena anterior e posterior. O Invasor é um crescendo de situações verticais, após dois filmes em que assistíamos a um crescendo de situações horizontais.

Não foi à toa, em seguida, que Brant convidou Walter Carvalho para fotografar Crime Delicado – esta foi, aliás, a única parceria da dupla, informação a ser considerada. Carvalho, adepto da fotografia mais límpida, perfeita, irretocável e arquitetônica, adequou-se à perfeição ao tipo de atmosfera buscada por Brant neste filme. Trata-se, como O Invasor, de uma história de ruptura emocional, porém devidamente “higienizada” pelo ambiente da arte, da performance, da pintura, dos ambientes internos de galerias, teatros e ateliês. O crítico teatral de repente parece transportado para dentro de alguma das peças (dramáticas) sobre as quais ele escreve, e esse mundo da arte pode ser tão sujo quanto o mundo real, mas será sempre o mundo da arte. As imagens “artísticas” de Crime Delicado geram choque porque parecem adequadas demais ao mergulho vivido pelo personagem. De maneira especular, a presença de Walter Carvalho soa como elemento essencial na desconstrução da representação problematizada (não sem uma mordaz ironia) no encadeamento do filme.

Eis que, em seguida, Beto Brant volta a ter Toca Seabra como diretor de fotografia em Cão sem Dono (2007), filme de inquietações

bastante próximas a O Invasor – e coassinado por outro parceiro habitual, Renato Ciasca. A maneira como os corpos são filmados em contato com seus ambientes, aliás, é algo similar nos dois trabalhos. Paulo Miklos adentrando o escritório de dois burgueses de classe média é uma imagem física perturbadora tanto quanto Júlio Andrade definhando de amor num apartamento desértico. A forma como o enredo vai sendo moldado – a preocupação essencial é o contato crescente de um casal, mas o filme se forma basicamente por cenas “isoladas” que se conjugam com o todo – também ganha contornos especiais pela maneira como as imagens são apresentadas e enquadradas.

A trinca inicial da obra de Brant (Os Matadores, Ação Entre Amigos, O Invasor) possui uma interseção com a trinca seguinte (O Invasor, Crime Delicado, Cão sem Dono), ligada uma à outra através da repetição de um dos filmes. A possibilidade de um elemento de ligação em duas trilogias consideravelmente distintas permite vislumbrar como a obra do cineasta permanece uma só, ainda que se modifique à medida que ele deixa de falar do ambiente urbano como espaço do crime e do acerto de contas e passa a refletir, nesse mesmo universo que tem a cidade como moldura, as complexidades do amor, do afeto e das relações entre os seres.

Essa transição culmina no verdadeiro experimento que é O Amor Segundo B. Schianberg (2009), certamente o trabalho mais indefinível e tateante de Brant. Nascido como projeto de TV, ganhou nova montagem e chegou aos cinemas, passando a ter, com isso, a primazia de ser elencado como o sexto longa-metragem do realizador. Utilizando de câmeras digitais de baixa definição e fotografia assinada por Heloísa Passos, o filme trafega entre a narrativa (verticalizada) de um casal num apartamento (dialogando diretamente, por essa via, com Cão sem Dono) e a videoarte como concretização dos anseios da personagem feminina (que tem na figura masculina o seu objeto-modelo, inversão do que se via na relação do pintor com a mulher sem perna de Crime Delicado).

Depois do “desvio” aparentemente necessário de O Amor Segundo B. Schianberg (e a palavra entre aspas ganha sentido maior quando se constata que este é o único trabalho do diretor sem a presença de Marçal Aquino no roteiro), Brant mistura tudo que fizera até então em Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios. Ele adapta um romance de Aquino, aborda um universo permeado de suspeitas, crimes e traições, acompanha a ascensão e derrocada amorosa de um casal e filma uma história “tradicional” (com as já citadas idas e vindas no tempo) como se cada cena fosse importante por si mesma e independesse da evolução narrativa. Desta vez, porém, e pela primeira vez, Brant (novamente dividindo a direção com Renato Ciasca) se afasta da urbanidade e vai ao interior do Brasil – no caso, a Amazônia. De certa forma, é como se ele universalizasse os conflitos retratados até então em seus filmes, ao mesmo tempo em que os registra muito mais próximos do transe, da hipnose, do convite ao delírio – daí a cena inicial do filme, com uma nativa nua se insinuando diretamente à câmera, ser a introdução precisa para o mergulho proposto. É como se Brant catalisasse o turbilhão psicológico de Marco Ricca em O Invasor e de Júlio Andrade em Cão sem Dono e o mesclasse às investigações visuais do desejo mostrados nas abstrações da videoarte de O Amor Segundo B. Schianberg.

Por mais que os corpos sempre tenham sido essenciais nos filmes de Brant – com importância crescente a cada novo projeto, saindo da mera presença física da fase inicial, passando pela movimentação deliberadamente avassaladora da fase transitória e chegando ao estudo quase clínico visto em Crime Delicado e O Amor Segundo B. Schianberg –, em Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios a corporificação dos personagens é o que parece haver de mais intenso. Os três protagonistas (Gustavo Machado, Camila Pitanga, Zécarlos Machado) se entregam fisicamente à câmera, desta vez com a fotografia assinada por Lula Araújo. Em especial Pitanga, cuja simples existência em cena é a explosão dos conflitos apresentados no filme: inicialmente mostrada como um corpo sexualmente intenso, ela se desconstrói de maneira peculiar. Primeiro a vemos no presente, em seu auge, na Amazônia; depois retrocedemos ao passado, quando ela é encontrada nas ruas do Rio de Janeiro, sob o jugo do vício e da prostituição; acompanhamos sua “limpeza”, proporcionada pelo homem que se tornará seu marido e a levará embora; mais à frente, de volta ao presente (mas no futuro daquele tempo mostrado na primeira parte do filme), novamente ela definha, desta vez vitimizada pela loucura.

Estas três fases do corpo de Camila Pitanga, com características específicas em cada momento da vida da personagem, unificam muito mais o filme do que simplesmente a “trama”. A constante metamorfose física da atriz – e a forma ativa como, em cada momento e de maneiras muito evidenciadas, ela desequilibra a imagem e tira a sustentação daquilo que, apenas na aparência, estava devidamente instituído – é, de certa maneira, a representação do próprio cinema de Beto Brant, sempre se remodelando e se insurgindo contrário às expectativas. À maneira do personagem de Gustavo Machado, ao mesmo tempo resignado e esperançoso por aquilo que o destino lhe reserva na presença daquele corpo metamorfoseado de Camila Pitanga, o espectador mais fiel de Brant tende a se manter um insistente apaixonado, sempre disposto a enfrentar o próximo desafio que essa paixão vai lhe proporcionar e torcendo para que a chama, de alguma forma, se mantenha acesa.

Marcelo Miranda

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