Ano VII

O cinema de Karim Aïnouz

terça-feira dez 18, 2012

O cinema de Karim Aïnouz

Já no primeiro longa, Karim Aïnouz foi merecidamente colocado entre os realizadores que deveríamos observar atentamente – Madame Satã ainda é um dos filmes mas potentes das últimas décadas.

Com o passar dos anos o tom de seus filmes foi mudando. Dos curtas até o primeiro longa seria apropriado estabelecer diálogos e dissonâncias a partir da ideia de refinamento e selvageria, sofisticação e rebeldia, delicadeza e agressividade. A segunda foi se diluindo em detrimento da primeira.

Permaneceu em seus personagens o desejo de deslocamento, um incômodo com a acomodação. Esvaiu-se, porém, o que havia de explosivo. Seu cinema tornou-se mais dissertativo, mais afetuoso, e menos reativo. Não esvaiu-se a sofisticação, mas sim a ânsia do embate. Um cinema menos do ímpeto, mais da previsão.

No começo da carreira como curta-metragista, Aïnouz aproximou-se de questões sobre o homem (seu corpo e gestos), a masculinidade e as expectativas sociais. O primeiro enfrentamento de Aïnouz com o masculino acontece no curta-metragem Seams (1993). Misto de cine-diário e documentário, o homem se faz presente pela sua retumbante ausência. Isso não é retórica de crítico. Por ser um filme apenas com mulheres (tias, mãe e avó do diretor) que o homem aparece como elemento passivo. Todas as mulheres compartilham com a câmera o mesmo enredo de infelicidade ou indiferença à figura masculina, instigando uma elaboração em primeira pessoa do diretor.

Este é o primeiro comentário cinematográfico de Aïnouz sobre o homem: o macho que foge. Está nessas mulheres de Seams o embrião das relações femininas em O Céu de Suely.

Com Paixão Nacional (1994) sobe-se um degrau na abordagem do masculino. O corpo do homem faz sua primeira aparição como organismo potente e sexual. Ele já não é mais um espectro genérico, mas sim fonte de desejo. E o corpo do homem, por mais que o cinema brasileiro pós-Retomada faça um contorcionismo em evitá-lo, é feito de partes. Paixão Nacional se devota a elas.

A questão do masculino, subscrito pelo específico da homossexualidade, encerraria um breve arco de sentido nos curtas de Aïnouz com Hic Habitat Felicitas (1996), título em referência à inscrição que ilustrava um falo na porta de entrada das moradas em Pompeia.

Existe uma evolução do sujeito nessa primeira parte da obra de Aïnouz: sai-se do medo de ser chamado de maricas em Seams para a afirmação do pênis como fonte da felicidade em Hic Habitat Felicitas. É a configuração de um discurso político do estar no mundo, maturação do que é específico do homem num país de cultura machista.

Depois dessa maturação, seria possível dar o grande salto, não só do formato (curta para longa-metragem), mas de postura. Aïnouz deixou para trás o cinema que cata migalhas das pistas da masculinidade como em Seams para afirmá-la sem rodeios. Em vez do menino que responde vagamente à pergunta da avó no final do primeiro curta (“você está com 26 anos, não tem uma namorada?”) o sujeito em Madame Satã berra: “Eu sou bicha porque eu quero e não deixo de ser homem por causa disso, não!”.

A rebeldia

Madame Satã não é sobre o heroísmo consciente de uma personagem que tem como antagonista o mundo, mas sobre a rebeldia como algo ontológico da existência. O que torna o filme um exercício constante de reação, atração e repulsa. João Francisco reage com a sofreguidão dos que desconhecem a derrota, mesmo que ela bata diariamente à sua porta. Reage à exclusão e à marginalidade com a mesma fúria que repele o amor e o afeto.

Por não dominar o verbo, João Francisco fala com o corpo em vez das palavras. É com ele que assistimos a expressão de uma alma que violenta e poética – seja nas cenas que dá pernadas nos policiais, seja nos números musicais no bar do Amador.

Madame Satã é o topo da elaboração sobre o masculino na obra de Aïnouz e uma tremenda contribuição ao assunto na produção brasileira. Pois é um dos raríssimos filmes em que o corpo não é nem evitado nem banalmente explorado, mas capturado na sua natureza elementar de manancial de potência. Um filme de posicionamento político com o mundo.

Ainda que seja possível continuar uma leitura em linha reta dos filmes de Aïnouz até chegar a O Céu de Suely, é preferível trabalhar com a dissonância, pois há uma alteração de registro. Se Hermila/Suely e João Francisco compartilham a mesma gana de sair do lugar, o tratamento que o filme dá a essas almas é distinto.

Em ambos a fotografia é de Walter Carvalho. Em Madame Satã escolhe-se a câmera na mão, realista e febril, enquanto em O Céu de Suely insere-se o personagem num espaço, esperando que este ajude a tornar discurso o que é invisível da alma.

No primeiro, o personagem se impunha ao espaço. No segundo, o espaço é o que dá a dimensão da personagem. O realismo político tornou-se um realismo sensível, ainda que o corpo seja, tal como em Madame Satã, o instrumento de confronto com o mundo e o passaporte para o horizonte. Mas em vez de potencializar o corpo, esse outro registro o ameniza, o coloca menor dentro de um grande espaço.

Apesar de ambos terem personagens com raiva da vida que lhe é dada, Madame Satã deixa a raiva entrar no tecido do filme, enquanto O Céu de Suely a controla, devolve para o interior e requisita que outros elementos deem conta da vontade de voo da personagem. Ganha-se em sensibilidade, perde-se em vigor.

Aportamos em Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (codireção de Marcelo Gomes), um filme anestesiado. No momento em que Aïnouz torna o corpo um espectro autocentrado, o mais distinto de sua carreira é neutralizado: o embate do estar no mundo. Pois Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, apesar de toda a boniteza e plasticidade das imagens, da entonação poética de Irandhir Santos, deixa o incômodo ranço de que o sujeito no filme assiste a tudo aquilo à sua frente com estéril benevolência. Um “eu” que se mostra um observador en passant do mundo à sua frente.

Nesse sentido, Tatiana Monassa, em texto para a Contracampo, fez uma ponderação precisa do filme no contexto do cinema brasileiro contemporâneo [1]:

O elemento político dilui-se, pois: a tal represa que extinguiria vilas e desalojaria famílias de sua pacata existência não é a barragem das Três Gargantas de Jia Zhang-ke em Em Busca da Vida. Sobretudo porque o personagem é um passante que emociona-se pontualmente com elementos que encontra em sua viagem, mas está tão absorto revolvendo seus sentimentos dentro do peito ou da cabeça que é incapaz de estabelecer pontes consistentes com o exterior. Tudo é efêmero: as emoções, as articulações entre som, imagem e narração, os sentidos possíveis de serem extraídos das diversas camadas que compõem o filme.

O geólogo José Renato é um sujeito passivo, constatação incômoda numa obra marcada por personagens reativos. João Francisco, Hermila/Suely e Violeta (de O Abismo Prateado) também sofreram com a dor de cotovelo tal como o geólogo de Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo. Mas nem por isso deixarem de agir no mundo, de ignorar a política dos corpos com os espaços. São corpos que não aceitam o controle, contrário do geólogo, blasé no seu caminhão.

Mas parece haver uma retomada da volta do personagem que tem suas dores e amores fincados no mundo. Apesar de ser um filme de encomenda (Aïnouz foi convidado pelo produtor Rodrigo Teixeira), O Abismo Prateado indica uma possível volta ativa do estar no mundo, uma retomada do diálogo com seus filmes pregressos.

A dialética com o outro, matéria fundamental do cinema, abortada pela esterilidade de Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, reaparece em O Abismo Prateado. Tem-se novamente a personagem inquieta, que reage, que volta à carga após a perda. Resgata-se uma elaboração sobre o que é estar no mundo, da personagem que comanda o espaço.

É possível até comparar o tour existencial de Violeta com o de Hermila/Suely. Esta volta para Iguatu, mas percebe que não cabe naquele lugar e encontra maneiras de sair para recomeçar; a outra é obrigada a se deslocar após o abandono do marido e busca outros caminhos aos trancos e barrancos numa noite carioca. Porque, tal como o eu-lírico da música que inspira o filme – Olho nos Olhos, de Chico Buarque –, seu real desejo é reerguer-se e esfregar na cara do marido que está bem, linda e gostosa.

Neste momento, me parece que está em dúvida a continuação do embate político nos filmes de Aïnouz. É preciso aguardar os próximos capítulos, especialmente Praia do Futuro, seu próximo longa, para saber se haverá uma recuperação enfática da relação “eu no mundo” como houve com muita força até Madame Satã e, em certa medida, também em O Céu de Suely.

Heitor Augusto

Nota:

1. Tatiana Monassa. Tendências e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Contracampo, 01/2009 in http://www.contracampo.com.br/94/pgtiradentes01.htm

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br