Ano VII

Cinema, Aspirinas e Urubus

segunda-feira dez 17, 2012

Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes

O leitmotiv da saudade atravessa os três longas-metragens de Marcelo Gomes. Em Era Uma Vez Eu, Verônica ele é mais explícito: o Frevo da Saudade (“Quem tem saudade não está sozinho/ tem o carinho da recordação”) antecipa o desfecho da relação pai e filha. Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo é todo feito em cima de um personagem que rumina a saudade. Mas é com Cinema, Aspirinas e Urubus que ela, a bendita, filha da despedida e do adeus, atinge o cume da sofisticação.

No momento em que o alemão entra no sertão e é invadido pela paisagem esbranquiçada inventada pela fotografia de Mauro Pinheiro Jr., surge no rádio a canção Serra da Boa Esperança – letra de Lamartine Babo, voz de Francisco Alves. Cantando sobre os corações dos que partiram ou dos que assistiram a partidas, ele diz: “Ó minha serra, eis a hora do adeus, vou-me embora/ Deixo a luz do olhar no teu luar, adeus”.

Ao associá-la ao gringo que acaba de chegar, Cinema, Aspirinas e Urubus oferece uma teia de sentidos. Pode ser uma ilustração da paisagem que Johann deixou para trás ao sair da Alemanha; do presente idílico no Brasil, que tem data para acabar porque a Guerra arrasta o que está pelo caminho e viaja além-mar; ou da amizade insólita com o matuto marrento Ranulpho, seu guia pelo sertão. Saudade de um passado que se foi, saudade de um presente que se irá.

Assim, só com uma canção, um personagem que olha e um cenário que queima a pele, o filme entrega 30 segundos que valem por dezenas de cenas expositivas.

Dessa cena em diante o filme joga com a aparente imobilidade do enredo e o convite constante para o espectador compor na sua cabeça o filme que se passa. Tanto pela decupagem, que o posiciona em vários lugares da ação durante a viagem de Johann, quanto pela montagem de Karen Harley, que altera o ritmo e praticamente atira personagens no quadro, surpreendendo.

Quando Ranulpho entra em cena, configurando com mais clareza a ação, avisando que a história vai começar de fato, na verdade o filme já se impregnou em nós há muito. Pois esse é o segredo da permanência do filme: fingir que não fala sobre nada, mas falar sobre as coisas mais humanas nos gestos menos visíveis.

Se fosse escrita e não filme, Cinema, Aspirinas e Urubus seria um conjunto de parágrafos prazerosos de ler, com algumas vírgulas discretas e reveladoras da natureza humana.

Heitor Augusto

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