Ano VII

Cidade de Deus

segunda-feira dez 17, 2012

Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund

A primeira reação diante de Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, foi de susto. Pobreza, tráfico e violência explodem na tela desconstruindo o imaginário da favela idílica de um país cordial – imaginário distante da realidade e que remete ao pobre digno, alegre e trabalhador (que poderia até ser malandro, mas bom). A exacerbação da violência, representada no personagem Zé Pequeno, tirou o chão de quem se sentia confortável com a visão/impressão romântica da favela.

Tal cenário induz qualquer análise sobre o filme a realçar o social em detrimento do próprio filme. E, mesmo que fosse ensaio acadêmico (e não estas poucas linhas), ele apenas tangenciaria a complexidade do tema. Óbvio que não se pode ignorar as questões sociais que Cidade de Deus suscita. Mas os realizadores sabiam que estavam diante de um tema urgente (trazido pelo livro de Paulo Lins) e, apesar do choque que ele provoca, fizeram cinema e não estudo sociológico. Se ele se presta (e se presta) a tal estudo, é outra questão.

A partir do conceito de que cinema é representação da realidade, o filme retrata a favela em que o social está subentendido, mas é cinema, antes de tudo. E o filme não é bom por abordar tema de interesse sociológico, mas por reunir profissionais competentes e talentosos e utilizar todos os elementos fílmicos disponíveis para lhe conferir a qualidade que resultou na rara reverberação externa de um filme nacional.

Elementos como a fotografia exuberante que demarca os três atos do roteiro (cujo ponto de partida é um prólogo magnífico na sua dramaticidade), a montagem acelerada (que dita o ritmo e dá intensidade aos conflitos), a mise-en-scène crível baseada na preparação de não-atores (ame ou odeie o método, o filme não seria o mesmo sem ela), a trilha que pontua ações com comentários afetivos e irônicos (vide os versos de Alvorada, de Cartola – “lá no morro/ninguém chora não há tristeza/ninguém sente dissabor”), o humor que ameniza o impacto da violência e a direção que dá organicidade a tantas histórias paralelas.

São os aspectos mais visíveis (há outros) a serviço da jornada do herói/narrador na busca por saídas e que resume o sonho mais primitivo de uma sociedade que se pretende menos cruel e mais justa: o encontro sexual/afetivo, a inclusão e a realização profissional.

Visto à distância de dez anos, não se assusta mais com a ficção (baseada na realidade) de Cidade de Deus, mas com a banalização diária da violência real.

João Nunes

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