Ano VII

Homens e Mulheres: O cinema de Carlos Reichenbach pós-92

segunda-feira dez 17, 2012

Homens e Mulheres: O cinema de Carlos Reichenbach pós-92.

Apesar de ser homem, o cineasta tematizou (principalmente a partir da década de 90) a mulher. Um caso de amor extremo a elas, que pelas lentes de sua câmera são divas espirituais, musas divinas, ninfetas carnais, feiticeiras sonhadoras e caçadoras zelosas. A subjetividade feminina, para um homem, é uma outra dimensão. O cinema mais recente de Reichenbach é um registro de uma viagem por este mundo desconhecido.  

Alma Corsária trouxe uma das mais belas sequências do cinema brasileiro dos anos 90: Bertrand Duarte se finge de noivo de Andréa Richa para a família dela que mora no interior – o teatrinho é necessário para mascarar aos olhos dos parentes o fato da moça fazer programas para sobreviver. Na estação de trem a câmera precisa nos faz embarcar ao lado do falso casal (verdadeiro) rumo à cidade natal da moça. O lugar logo se mostra um centro muito forte do conservadorismo mais retrógrado: o irmão dela é um banana obediente e servil; o pai da moça, símbolo maior da repressão. Em meio a tal cenário de alienação e estagnação, o contato com a vida exterior se dá principalmente pela televisão. Justamente o contrário do casal recém-chegado, que está imerso na vida (real) até o último fio de cabelo. A visita transcorre sem maiores problemas, e ao final, quando os dois voltam de trem para a cidade grande, surge um clima inesperado entre eles, e que dessa vez é mais do que a pulsão erótica já manifesta entre os dois: uma simples brincadeira com um cigarro somada à expressão de leveza (rara) nos rostos do casal desenham uma imagem gloriosa onde o afeto explode na tela. Malandragem e delicadeza. Onde a moralidade quer fazer enxergar degradação, o filme vê o Bem com um sorriso glorioso por ter aberto uma fenda de alegria em um mundo triste. A câmera do filme enxerga a impureza com pureza. Lirismo e compreenssão. Essa cena rima com uma declaração de Reichenbach em uma entrevista concedida a Ruy Gardnier e Daniel Caetano em meados de 1999, na Contracampo, ocasião em que ele comenta o cinema oriental: “O Japonês tem um respeito pela puta que o ocidental não tem”.

Esse confronto da mulher sexuada com um sistema de valores ocidentais extremamente conservador é uma constante no cinema de Reichenbach. A partir de 1992, essa guerra é trabalhada em uma chave mais afeita ao melodrama clássico, trocando as vertigens libertárias por uma direção cadenciada com uma sobriedade maior. Nem melhor nem pior. Mudança de estilo, mas com a essência inicial que movia seus primeiros filmes preservada. Seja a serena e passiva Betty Faria em Bens Confiscados, seja a arisca e provocadora Rosane Mulholland de Falsa Loira, as mulheres de Carlão estão sempre envoltas por um mundo masculino que,  se raramente proporciona algum alento, frequentemente causa muito sofrimento a elas. Não necessariamente esses homens são intrisicamente maldosos (Antônio Grassi em Bens Confiscados) ou levianos (Cauã Reymond em Falsa Loura). Às vezes, a dor é fruto de algo natural da vida: o abismo entre os gêneros. Sem maniqueísmos, sem entrar na antiga modinha “guerra dos sexos” de modo superficial. Reichenbach busca sim aquilo que há de mais humano, não só em cada homem e em cada mulher, mas principalmente nas relações entre eles. É por isso que em sua obra existe a possibilidade da existência do genial cantor lírico/brega “Luis Ronaldo”, na figura exata de Maurício Mattar, em Falsa Loura. Aproveitando o deslumbre da fã, ele compra o corpo de Rosane para uma noite de sexo. Porém o foco do filme não é exatamente a crítica ao mecanismo corpo/sexo/mercadoria. Luis Ronaldo não é um homem ruim, ele é um homem solitário e carente. Pai solteiro, seu filho perde a virgindade com a falsa loura. Tudo isso são cenas que poucos diretores poderiam filmar de modo tão afetuoso, jogando para escanteio os preconceitos sociais e a moralidade repressora sem lançar mão de “cenas de choque” juvenis típicas de cineastas de mentes igualmente livres, porém menos profundos. O amor (e sua ilusão) é o que guia toda esta sequência, das mais tocantes e deslumbrantes de todo o cinema de Carlos Reichenbach.   

Em meio a homens egoístas e dominadores, no conjunto dos filmes dos anos 90-2000, um personagem masculino se difere de todos os outros. É o Carlos Ricelli de Dois Córregos, um “velho comunista”. Ex-militante da esquerda radical, ele é um homem de princípios: logo, um homem sozinho, que vive dividido entre dois mundos, entre dois córregos paralelos que parecem nunca se encontrar. De um lado, seu mundo de luta política; do outro, sua vida pessoal, as mulheres de sua vida. As meninas ficam encantadas pelo velho tio, secretamente o desejam. Não é que ele seja perfeito, longe disso, por sua rigidez na crença de seus ideais ele causa sofrimento em todos que estão a sua volta, terminando fatalmente por sempre abandonar aquelas que mais o amam em nome de sua “missão”.

Sina semelhante tem o pai de Rosane em Falsa Loura. O velho tem a metade do rosto deformado, ele é uma espécie de incendiário. Para sobreviver presta serviços a bandidos, e já teve inclusive passagem pela prisão. Vida marginal por um lado, pai amoroso de outro. Pai castrador também, pois rejeita firmemente o filho que é gay, apear de se importar com ele: “Como é que ele tá?” (tímido, perguntando à filha sobre a situação do filho deserdado). Assim como o Ricelli de Dois Córregos, sua trajetória vai terminar com uma viagem que possivelmente não terá volta, rumo a mais um trabalho. Ele não pode fugir do seu destino, e não deixa de ser um ato de amor se separar da filha para que ela não sofra tanto ao lado dele, que mais uma vez, se lança ao desconhecido.  

Esses são dois homens ímpares no conjunto de filmes aqui analisados. Sua bondade e compreensão (não desprovida de virilidade) com as mulheres são muito maiores do que a dos outros personagens masculinos de Reichenbach, que, em sua maioria, são durões de uma forma mesquinha e tacanha.  

São caricaturas de valentões que nada mais fazem do que manifestar sua idéia de poder pela castração do outro, seja reprimindo-o, seja dominando-o. De qualquer forma, são caricaturas de homens que canalizam sua energia psíquica para subjugar o outro. É o bando de xenófobos fascistas liderado por Selton Mello em Garotas do Abc -, é o recruta desequilibrado que reage com violência à recusa de Tereza em continuar vendo ele em Dois Córregos, e também o jagunço animalesco de Bens Confiscados. São também todos os tiras e detetives que habitam esses filmes de forma truculenta e autoritária.  Ainda, essa figura do macho castrador ganha outros contornos mais complexos nesta fase madura da obra de Reichenbach. Em Bens Confiscados, Antônio Grassi é um homem fino e elegante, educado e inteligente. Aquilo que ele semeia, porém, é o Mal. Manipulador cerebral, ele usa as pessoas sem delas ter piedade, trocando todo e qualquer resquício de humanidade por poder e dinheiro. Irmão deste personagem é o perigoso Dr. Vargas de Falsa Loura, que com seu carrão imponente, seu dinheiro e seus contatos influentes, leva o Mal para dentro de uma casa (aquela habitada pela loura Rosane Mulholland e seu pai incendiário). Com esses dois personagens, Reichembach apresenta o Mal em sua versão mais refinada. 

Desse embate entre homens e mulheres, e de cada um deles com o mundo, a decepção no rosto de Rosane ao final de “Falsa Loura” é a imagem síntese. É o sonho dela estilhaçado (o homem ideal, o cantor Luis Ronaldo), a sensação que Filipe Furtado chama de “estupro emocional”, pois vendida ao famoso cantor por intermédio do Dr. Vargas. Sua decepção é tudo isso e mais um pouco. Seu desencanto, seu desespero, é com a lógica do mundo visto como selva onde o que antes era força bruta anacrônica (o Pai de Andrea Richa em Alma Corsária, o jovem milico de Dois Córregos e o Jagunço de Bens Confiscados) toma nova forma calcado no poder do dinheiro e da habilidade política. Esta imagem final do rosto de Rosane, câmera lenta que distende no tempo os fotogramas impressos com a luz de seus traços banhados em lágrimas, é o filme olhando para nós, o fim e o começo de todo um cinema, o ponto de chegada após a viagem transformadora e, ao mesmo tempo, findadas as ilusões, um ponto de partida para um futuro mais duro que se anuncia.

Um futuro sem Carlos Reichenbach é um futuro mais duro para a arte à qual ele dedicou a sua vida. Seu trabalho gerador e fertilizante no universo do cinema é seminal na fase cinematográfica pós-collor. No entanto, sabemos que as circunstâncias para que o grande cinema floresça em todo o seu potencial ainda são bastante áridas por aqui. Independente do que aconteça, seus filmes estão fixados para sempre em nossas mentes, e é neste espaço coletivo que Carlão, agora uma imagem, múmia, sobrevive. Seu amigo José Mojica Marins, diante da autoridade castradora que quer matá-lo em “A Encarnação do Demônio”, cravou no mundo a frase: “Capitão, uma imagem não morre!!!”.

Fernando Watanabe

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