Ano VII

Os documentários de Sergei Loznitsa

terça-feira nov 6, 2012

Comentários sobre a produção documental de Sergei Loznitsa

Quase no final de A Colônia, documentário de 2001, de Sergei Loznitsa, existe um plano que define, de certa forma, o tema dos documentários do bielorusso. O plano é de um braseiro e nele, por um longo tempo, vemos a brasa sendo consumida. Tal plano teria pouco sentido, se os planos anteriores e, sobretudo, os seguintes não tivessem uma relação clara com este. Antes, Loznitsa mostra várias atividades dos internos da colônia no intervalo de um dia, e na sequência do plano do braseiro, retratos fixos, planos com os internos pousando para a câmera, um a um, estáticos, olhando para a lente, urgentes, com seus rostos e corpos ardendo, ainda que retirados da vida social e mantidos naquela colônia psiquiátrica. Ainda ali, longe do mundo, mas no mundo, eles vivem, queimam como a brasa.

O tempo ido, a sensação de tempo se consumindo, se esvaindo, sendo, o fluxo do tempo é dado a cada plano deste e de outros documentários de Loznitsa, mesmo em documentários calcados na montagem de material de arquivo, caso de O Bloqueio de 2005, que registra o cerco a Leningrado na 2ª guerra, cerco que coloca a cidade abaixo e em chamas numa morte certa e lenta.

Tal ideia também está em dois de seus filmes mais belos, A Estação de Trem de 2000 e Paisagem de 2003. No primeiro, o trabalho de fotografia de Pavel Kostomarov ganha ares impressionistas ao registrar em um preto e branco bastante granulado os corpos dormindo contorcidos e em estado de exaustão numa estação de trem. Assim como em O Bloqueio, e em outros filmes, Loznitsa cria uma relação vertical hipnótica entre imagem e som, o barulho dos trens, os rangidos da estação, os roncos e suspiros se misturam às imagens dos seres entregues ao sono, em transe, em estado de entrega total.

Paisagem começa com vários travellings pela paisagem gélida de um vilarejo deserto, os movimentos de câmera terminam sempre em uma máscara preta na montagem, o que confere aos planos uma ideia de circularidade, até que algumas pessoas começam a se reunir num largo. O filme então passeia pelo rosto das pessoas em planos que lembram muito os planos sequência de Do Leste de Chantal Akerman e os planos do mesmo Loznitsa em Minha Felicidade. Unem-se à força das imagens, à força dos rostos, conversas destas pessoas sobre questões diversas, nada muito importante, nada desimportante, coisas do dia a dia, lamurias, inquietações, compromissos, queixas, palavras sem nexo, questões vulgares. O homem e o humano ganha a paisagem e as lentes, até que o som anuncia a chegada da máquina, do ônibus que levara aquela multidão a um outro lugar. Elas agora brigam por um lugar no ônibus, espremem-se, formam um caldo só. Loznitsa acompanha o caos e os ônibus que partem. O filme é só isso, é tudo isso.

Outros dois filmes preciosos são Cinejornal de 2008 e Retrato de 2002. O primeiro, um filme de montagem, revela como eram as propagandas políticas da União Soviética. O filme é daqueles materiais obrigatórios para se entender não só a história da propaganda política como da própria história do regime comunista. Já, Retrato, é o documentário mais animado da filmografia de Loznitsa e tem uma preocupação nitidamente cultural, de revelar rostos, tipos, canções e hábitos de personagens do interior da Rússia. Além de uma série de retratos com pessoas estáticas no quadro, iguais aos de A Colônia, ainda que no plano algo se mexa, as folhas das árvores, um animal, um pano etc, o filme traz alguns momentos de extrema poesia e humor como a relação de um casal de velhos pastores com um bode que os persegue e a cena deste mesmo bode – a melhor imagem de toda a Mostra -, dividindo um cigarrinho de palha com o idoso e tragando com enorme prazer. Retrato lembra um pouco o universo siciliano de Straub e Huillet, sobretudo, quando velhas russas cantam ladainhas sobre o casamento e outras questões frugais.

Fechando esta breve análise, a retrospectiva dos documentários de Loznitsa foi um dos pontos altos da Mostra. Se o seu trabalho ficcional é tido por muitos como mais fraco – não me incluo entre os que acham isso – , a genialidade de sua incursão pelo documentário, ancorada pelo magistral trabalho de fotografia de Pavel Kostomarov e por um desenho de som bastante rico, me parece muito difícil de ser contestada. Parabéns a Mostra pela iniciativa.

Cesar Zamberlan

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br