Ano VII

Algumas palavras sobre Minoru Shibuya

segunda-feira nov 5, 2012

Algumas palavras sobre Minoru Shibuya

Amplamente desconhecido, Minoru Shibuya certamente não está no primeiro time do cinema japonês. Mas não é por isso que seus filmes mereçam o desprezo. Uma visão atenta de um punhado deles revela bem o contrário: um diretor que nem sempre acertava, mas que tinha muita consciência do cinema e de seu papel na história.

Sua carreira desenvolveu-se de maneira bem irregular, ainda que em seus filmes sejam perceptíveis traços em comum (é ou não é autor? isso importa?). No recorte de sete longas que circularam por alguns festivais internacionais e chegaram para esta 36ª Mostra SP podemos perceber claros sinais dessa irregularidade, uma vez que entre Os Passarinhos (1961) e O Dia de Folga do Médico (1952) existe uma grande diferença de qualidade e ambição. Troquemos Os Passarinhos pelo excelente Pessoas Modernas (1952) e temos a desigualdade representada no espaço de um ano de carreira, uma vez que O Dia de Folga do Médico cai bastante depois de meia hora por seu desenvolvimento cômico pobre e Pessoas Modernas, na construção, está mais para a Nouvelle Vague japonesa do que para os filmes que alguns veteranos faziam na época. Seu cinema pode parecer americanizado demais, o que afasta um público mal acostumado com as divagações sonambulísticas habituais de alguns queridinhos da Mostra. Mas convém lembrar que o cinema clássico americano influenciou todos os grandes mestres japoneses, de Tomu Uchida a Kurosawa, incluindo aí os óbvios Ozu, Mizoguchi e Naruse.
Quem vence a má vontade com os filmes de Shibuya ("diretor antigo, ausente em enciclopédias?") descobre um diretor seguro, que domina a mescla de gêneros (geralmente comédia e melodrama) com que gosta de trabalhar e sabe controlar o ritmo das sequências dentro desses diferentes registros. Shibuya tem pleno domínio da mise en scène. Sabe onde colocar a câmera e como movimentá-la, mantendo sempre uma distância ideal entre a lente e os atores, e entre estes e o limite do quadro.

Em Os Passarinhos, o melhor entre os sete exibidos na Mostra, há um plano que ilustra essa habilidade de encenador. Por meio de uma simples e justa movimentação de atriz e câmera, a belíssima Sachiko deixa o centro do quadro para ocupar a extremidade inferior esquerda, criando um enquadramento radicalmente descentralizado que reflete seu estado mental catatônico após uma desgraça familiar. A parede esverdeada submete todo o quadro à melancolia de Sachiko, para sentirmos com ela a mesma dor pela perda da mãe. É algo que a Nouvelle Vague japonesa só iria aprimorar alguns anos depois, na segunda metade dos anos 1960, sobretudo com Suzuki, Yoshida e Shinoda.
Em outro momento do mesmo filme, mãe e filha se despedem após algumas palavras tristes, que não conseguem demolir o muro que as separa. Uma sirene de fábrica faz com que ambas olhem para trás, com lágrimas nos olhos, e se reaproximem para um abraço conciliador. A decupagem acentua a dificuldade da reconciliação pela mudança nas distâncias entre elas e a lente da câmera, nos planos e contraplanos, mas também nos permite entrever a possibilidade de forte união entre as duas.

E há ainda um terceiro trecho a ser lembrado para esta pequena antologia de Os Passarinhos: a mãe agonizante num leito hospitalar percebe a filha que chega para vê-la. Mas o movimento da câmera dá a volta no quarto, passando pelo corredor e entrando pelo mesmo lugar que a filha supostamente havia entrado, conforme aprendemos pelo mapeamento do espaço, mostrando que na verdade a filha não entrou ali. Descrevendo a cena, pode até parecer um desses momentos chantagistas que vemos aos montes em melodramas comerciais. Ou algo que alguns diretores fazem para parecerem mais inteligentes às custas do sofrimento de um personagem. Mas quem viu o filme sabe que a cena está mais para Contos da Lua Vaga, de Mizoguchi, do que para algo do tipo As Horas, de Stephen Daldry, se é que esta aberração sentimental deveria ser lembrada.

Se Os Passarinhos é o melhor filme de Shibuya entre os sete da retrospectiva, funcionando como exemplo perfeito para uma ponte entre o cinema dos mestres e dos diretores da Nouvelle Vague (tal ponte, a propósito, seria completada em As Termas de Akitsu, longa filmado por Yoshida no ano seguinte), três de seus outros filmes são dignos de destaque: Retidão (1957), no qual vemos a forte ligação implícita entre mãe e filho, e um dos filmes em que Shibuya melhor se exercita dentro de uma decupagem mais clássica; O Rabanete e a Cenoura (1964), filme realizado após a morte de seu idealizador, Ozu, em que o mundo particular deste último tem uma perfeita tradução para o mundo ao mesmo tempo cômico e melodramático de Shibuya; e Pessoas Modernas, filme bem anterior no qual retemos a cena em que a prostituta se mexe para colocar-se em melhor posição para o recém-chegado malandro que pintaria as unhas de seu pé, e a câmera faz um movimento preciso para acompanhar as movimentações dele e dela.

Neste último, considerado por alguns colegas da crítica como inocente e datado pela maneira como encerra o drama de seus personagens, temos uma ousadia muito bem-vinda no retrato dos trabalhadores que habitavam o Japão do pós-guerra. Uma vez que o dinheiro sempre foi a força motriz de tudo, e o capitalismo no qual o país mergulhou permitia que não se disfarçasse mais essa força,  vale tudo para acumular capital, até enganar o mais próximo. Pessoas Modernas tem uma câmera que reconfigura inteligentemente os espaços, aumentando o desconforto pelo mar de lama em que todos se afundam. Ser datado dessa maneira é algo que um bom diretor deve almejar.

Sérgio Alpendre

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