Ano VII

O Gebo e a Sombra

quinta-feira nov 1, 2012

O Gebo e a Sombra (2012), de Manoel de Oliveira

Às palavras.

O Gebo. Homem íntegro, incapaz de cometer fraudes ou obter favorecimentos. Homem de números, e de uma inabalável honestidade. É contador de uma grande empresa. Mora com a esposa, Doroteia, e a nora, Sofia, e desconhece o paradeiro de seu misterioso filho João. Doroteia e Sofia o questionam sobre tal inabalável honestidade. A esposa acha que todos poderiam estar ricos se ele não fosse tão cabeça-dura, tão fechado às chances que o emprego lhe dá. Sofia o questiona moderadamente, como uma cúmplice que não sabe ao certo se tanto sofrimento vale a pena. Sofia é cúmplice. Em determinado momento, Doroteia menciona que o amor que Gebo tem pela nora é maior que pelo próprio filho. Ele concorda, em silêncio e em segredo.

A sombra. Crise econômica que se alastra pela Europa atingindo principalmente os países menos desenvolvidos (Portugal, Grécia). A sombra ameaça a estabilidade familiar com suas privações e tentações. Uma outra sombra esconde, no segundo plano, a primeira ação que representa o mal no filme, da mesma maneira que Oliveira sempre escondeu personagens nas sombras (lembremos da impressionante cena do velório em Francisca e inúmeras outras de sua carreira). Como Gebo esconde da esposa a verdadeira índole do filho, um ladrão. Sombra na consciência. Esse esconde-esconde será fundamental em O Gebo e a Sombra.

O cinema mostra

É comum reduzir o cinema de Manoel de Oliveira a um cinema da palavra. Realmente fala-se bastante nos filmes do diretor, e os que mal enxergam além da superfície geralmente os consideram verborrágicos demais ("muita falação e pouco cinema", seria um vaticínio criminoso nesse caso). É um erro histórico e frequente. O incauto pode falar, a respeito da cena de abertura de O Dia do Desespero, que são quase dez minutos em que nada acontece. Está errado, uma vez que tudo acontece enquanto a roda está em movimento e uma carta é lida em voz alta nesses primeiros minutos. Da mesma forma, há muito mais nas contas do Gebo do que apenas sinais e algarismos. Há toda uma vivência, todo um passado de dedicação pouco reconhecida, de cuidados com os ente-queridos, de zombaria dos colegas. Há toda uma armadura que o protege dos sentimentos gananciosos de familiares e das futricas dos vizinhos. Gebo se sente à vontade em meio aos números, com voz e tranquilidade de quem não deve nada à vida. Por trás de suas inúmeras falas, e das falas de Sofia, Doroteia ou João, vemos um mundo de acontecimentos, frustrações e desejos que se imbricam aos sentimentos dos outros. Essas imbricações são contempladas com uma mise en scène precisa, para não dizer perfeita, uma noção de tempo, espaço, entonações e comunicações gestuais que poucos diretores conseguem atingir.

Nos primeiros planos, tal redução a cinema da palavra já se mostra absurda. Durante os créditos, João é mostrado à direita de um navio cargueiro que ocupa dois terços do quadro, ou melhor, três quintos (a regra dos terços, como outras regras, é frequentemente subvertida por Manoel de Oliveira). Após os créditos, uma sombra toma conta do plano seguinte, impossibilitando nosso testemunho da ação de João. Mas sabemos tratar-se de um roubo. Somos transportados, então, para a casa do Gebo, onde Sofia e Doroteia o aguardam. Um plano/contraplano silencioso mostra o domínio que o diretor tem da encenação: Sofia vai para fora da casa e olha para Doroteia, que está do lado de dentro e responde ao olhar, através da janela que as separam, com os reflexos enriquecendo os planos. O cinema de Oliveira, na verdade, prescindiria da palavra para nos mostrar humores, sentimentos, desejos. Mas a palavra, mesmo assim, está presente, e é importante, pois o diretor sempre é fiel aos textos que adapta. Só não vale chamar de cinema excessivamente literário, pois é passar bem longe de sua arte.

Porque é desse jogo entre a palavra e a imagem que vem a força de seu cinema. Os pequenos gestos de cada personagem enquanto falam ou ouvem valem tanto quanto as palavras que saem de suas bocas ou entram em seus ouvidos. A posição que cada ator ocupa em cena é pensada de forma a equilibrar ou desequilibrar as forças do quadro. Por isso, Sofia ora está parada no entreaberto da porta que dá para a cozinha, quando está emocionalmente fragilizada pelo que Doroteia e Gebo falam de seu marido João, ora está sentada em cima da mesa, ocupando boa parte da metade direita do quadro, nos momentos em que tenta ajudar o frágil Gebo em sua cruzada moral. Em outros momentos, Sofia ocupa posições diversas, pois é a personagem mais inconstante e cheia de dúvidas e medos em todo o filme. Gebo está quase sempre à esquerda, em seu lugar cativo, acuado pelos outros personagens e pelo cenário iluminado com luz de velas. Será substituído, mais tarde, por aquele que o roubará, seu filho João. O único momento em que Gebo não está acuado em cena é quando ele se levanta e assume a culpa pelo delito do filho, para espanto de esposa e nora, numa das imagens mais fortes da carreira de Oliveira.

A importância do ator na obra de Manoel de Oliveira

Ricardo Trêpa tem sido o protagonista de quase todos os filmes do diretor nos últimos oito anos. Leonor Silveira trabalha com Oliveira frequentemente desde 1988. É a personificação da mulher na fase mais prolífica do diretor. Luís Miguel Cintra, o mais antigo da trupe, costuma aparecer como um contraponto cômico ou lírico, conforme o tom geral pretendido por Oliveira.

O Gebo e a Sombra quebra essa harmonia entre atores da casa, que geralmente são as forças centrais de seus filmes, pela introdução de três novos nomes: Michael Lonsdale, Claudia Cardinale e Jeanne Moreau. Esses três gigantes representam aqui não apenas seus papéis, mas uma homenagem à história do cinema.

Lonsdale é uma força impressionante em cena. É o tipo de ator que toma o filme para si com facilidade, e Oliveira parece ter deixado que ele ficasse bem perto de conseguir. Como Gebo, Lonsdale deixa para trás uma história de personagens fortes e nem sempre confiáveis que fez brilhantemente no cinema e constrói uma personalidade frágil, simples, comovente em sua dedicação ao trabalho e aos familiares. O contraponto é Moreau, com seu rosto forte e sua voz marcante.

Há uma cena importantíssima que reúne, sentados à mesa, a mesma  mesa que está presente em quase todo o filme, Gebo, Doroteia (Cardinale) e os dois personagens de fora da família: Chamiço (Cintra) e Candidinha (Moreau). O equilíbrio de forças dessa cena é um testemunho da construção de personagens em cinema. De um lado, Cardinale e Moreau, que interpretam mulheres práticas e determinadas, cada qual de um lado do candelabro que divide o quadro em dois. De outro, Lonsdale e Cintra, divididos pelo mesmo candelabro, vivendo Gebo e Chamiço, personagens românticos que sentirão com maior força as duras palavras do filho João, que nesse momento está ao lado de Sofia, em pé, atrás dos homens românticos. Oliveira corre aqui um risco, pois tem atores gigantescos interpretando personagens comuns. O risco de ter seus personagens eclipsados pela força cinematográfica desses atores se esvai pela experiência de Oliveira com a direção de atores e com o aproveitamento simétrico do espaço cênico. A composição é minuciosa, e cada gesto desses atores é funcional.

Palavra e utopia

Retomando o final da primeira parte deste texto, ainda a respeito desse encontro na mesa, podemos dizer que Doroteia e Candidinha, mulheres fortes criadas em um mundo que não é para os fracos, têm por trás a porta que dá para a rua, para a aventura e o desconhecido, para a ameaça e o inesperado (como o sol que invade o quadro na última cena do filme), enquanto Gebo e Chamiço, os românticos que vêem o mundo passando por eles, têm a porta da cozinha a lhes proteger, representando a igualmente frágil segurança do ambiente doméstico. Oliveira faz o simples. Filma os dois homens e as duas mulheres. Os olhares cruzados criam ou reafirmam ligações: quando Chamiço e Candidinha se entreolham, cruzam a linha dos olhares entre Doroteia e Gebo (este último também interessado em seu livro que controla o fluxo do caixa). João, afastado da mesa e repreendido por Sofia ("calado"), provoca o desconforto, quebrando os dois eixos de olhares que se constroem na mesa ao chamar a atenção para suas palavras realistas. Esse tipo de equilíbrio de forças que Oliveira opera em sua mise en scène pediria um estudo à parte. É aula de cinema para ser vista e revista, de preferência fora da correria de um festival.

O Gebo e a Sombra, ao lado de Sempre Bela, é o melhor filme do diretor desde O Quinto Império, por conseguir, com esse equilíbrio, que tudo se harmonize perfeitamente num jogo de esconde-esconde marcado pela complementação e pela contraposição – nunca pela reiteração ou pela negação – entre imagem e palavra.

Sérgio Alpendre

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