Ano VII

O Som ao Redor

quarta-feira out 31, 2012

O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho

Terminada a sessão de O Som ao Redor no Cinesesc, com a luz do cinema já acesa, muitas pessoas continuavam pregadas às poltronas da sala, olhando para a tela branca, arrebatadas. Tal arrebatamento, que parece comum nas sessões do longa pernambucano, ajuda a entender a unanimidade em torno do filme e o que tem levado pessoas extremamente diferentes em termos de estilos e preferências cinematográficas a apontarem O Som ao Redor como um dos melhores do ano e um dos melhores da cinematografia brasileira recente.

Mas o que há no filme que causa essa comoção e unanimidade?

Tarkovski, no documentário Viagem no Tempo, que também está na Mostra, diz a Tonino Guerra, quando este lhe transmite uma pergunta de jovens estudantes sobre o que era necessário para ser cineasta, que o cineasta precisava falar sobre a sua experiência de vida. A experiência vivida é que deveria ser o seu tema. E, nesse sentido, o que vemos a cada plano do filme de Kleber Mendonça Filho denota uma verdade e uma transparência não muito comum em outros filmes brasileiros.

Todas as personagens, todas as relações estão ali, dadas, de maneira simples, efetiva e verdadeira pela câmera e pela construção da encenação, a ponto de nada nos parecer afetado por uma circunstância outra que não a da experiência vivida pelo diretor, transposta à tela com uma leveza e talento que fazem desta passagem não um entrave para a fruição do filme, mas um exercício verdadeiro e puro de cinema.

O Som ao Redor não se prende à necessidade de narrar, de construir um universo que deflagre as modificações de um bairro, ou mais precisamente uma parte dele, a partir da reconstrução da paisagem urbana e dos elementos que acompanham essa “modernização”, elementos tecnológicos, mudanças nos hábitos cotidianos ou a chegada de aparatos de segurança; O Som ao Redor simplesmente registra, limpando todas as camadas que poderiam dar conta de uma encenação artificial, na qual o dispositivo acaba se tornando maior que o filme e, por isso, no seu revés apequenando o filme.

Kleber consegue evitar todas essas armadilhas, criando cenas nas quais os elementos dramáticos servem a construção de um panorama maior que os próprios personagens: o coletivo. Não há no filme, o personagem principal, o indivíduo carregado pela câmera, e do qual tudo é preciso ser dito. Temos o dia a dia da dona de casa atormentada pelo cachorro do vizinho, mas o marido dela é uma figura lacunar no filme. Assim como não é necessário explicar o desfecho de um namoro, ele acabou e pronto. As tramas são muito bem resolvidas pelo filme, da mesma forma, que a encenação e os planos construídos pelo cineasta têm a justa medida da necessidade da cena.

Isso tudo acaba por fazer com que o filme chegue aos seus momentos finais tendo criado uma teia de relações bastante segura para o momento final e aqui o leitor me permita o spoiler, contar o final do filme.

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O acerto de contas que encerra o filme e que, de certa forma, costura todas as histórias de vizinhança ali dadas, diz enormemente ao Brasil de hoje, e esse ponto, além de todos os outros aqui tratados, e que sedimentam tal caminho, é o que torna o filme tão arrebatador. Não há pistas do que acontecerá e se algo acontecerá e muito menos porque acontecerá. Mas essas relações de poder, relações históricas, trabalhadas pelo filme sem juízo de valor, sem maniqueísmos, dão conta tanto da cordialidade, no sentido tratado por Sérgio Buarque de Holanda, como da eternização de certas relações de poder, ainda que tais relações sejam datadas do período colonial, caso dos senhores de engenho, mas que só agora e de certa forma começam a mudar, mesmo que lentamente.

O Som ao Redor é um dos poucos, pouquíssimos, filmes no Brasil contemporâneo que dá conta destas relações que marcam o país pós Lula: esse crescimento econômico maluco que vem modificando a paisagem urbana e provocando algumas mudanças sociais bastante interessantes, com a ascensão de uma nova classe média, ainda que não consiga ou não mexa diretamente com as questões de base, as questões históricas de poder, seja dos senhores de engenho e seus crimes do passado, seja dos torturadores que agora começam a ter seus crimes revistos – fato que não está no filme, mas se encaixa num contexto bem próximo.

Finalizando – e deixando claro que voltarei ao filme quando estrear, para poder revê-lo sem essa correria da Mostra -, O Som ao Redor é um grande filme, e tem feito sucesso no mundo todo, porque encara e escancara feridas do Brasil de hoje e de um modo extremamente eficaz. Por tudo que Kleber Mendonça Filho fez na sua carreira de curtametragista não chega a ser surpresa uma estreia em longa bem sucedida, mas surpreende, sim, que tal estreia tenha se realizado com tal grau de maturidade. Exagero ou não, o tempo dirá, coloco o filme entre os melhores já produzidos no Brasil nas últimas duas décadas, ou a partir da retomada, junto com Serras da Desordem de Andrea Tonacci e Signo do Caos de Sganzerla. Não é pouca coisa.

Cesar Zamberlan

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