Ano VII

Parte 9: Cinema frio

segunda-feira out 29, 2012

Parte 9: Cinema frio: Abendland, Barbara

Em cinema, é necessário observar o contexto, o tom, ou a temperatura, que cada filme pede. A frieza estilística pode servir perfeitamente a um filme, e limitar o interesse de outro. Pode mais, na verdade, mas aqui nos limitaremos a dois filmes frios que chegam da Europa. Abendland, de Nikolaus Geyrhalter, e Barbara, de Christian Petzold.  No primeiro, a frieza está em acordo com a postura observacional, de quem procura entender as transformações de um mundo que escapa à nossa compreensão. No segundo, a tensão da fuga e a tristeza do ostracismo são cerceadas por um estilo gélido, equivocadamente (e calculadamente) distanciado.

Abendland, se não há outra tradução que me escape, quer dizer Ocidente. A proposta de Geyrhalter é, assim, bem pretensiosa. Quer dar conta de um ocidente específico, a Europa, em seus diversos lugares, sempre à noite. Congressos políticos vazios, batidas e treinos de policiais, hóspedes de motéis, medidores e vigilantes de sei lá o quê, pronunciamento do Papa para milhares de pessoas, plantões hospitalares, shows de música eletrônica, trabalhadores diversos em seus cursos noturnos. É uma Europa diferente a que o diretor tenta entender melhor com as imagens que capta de maneira rebuscada. Não se trata de uma sinfonia europeia, no modelo feito por Walter Ruttman em Berlim – Sinfonia de uma Metrópole ou Sinfonia do Mundo. Tampouco se assemelha ao Vertov essencial de Um Homem com uma Câmera. Esses são pautados pela velocidade, pela ideia de cinema como arte da montagem. Geyrhalter investe na cadência, na contemplação como forma de entender o mundo em que vive, e no limite do quadro como recorte pessoal de um mundo em transformação. Meio óbvio, enfim, pois cinema é isso, mas a maioria não consegue nem chegar a esse recorte. Ou, quando consegue, o faz aleatoriamente. De modo que Abendland é, sim, um filme acima da média.

O mesmo não posso dizer de Barbara, cuja frieza, diferente da que se encontra em Abendland porque é da dramaturgia, faz 38 Testemunhas, também frio, parecer o filme mais tesudo do mundo. Por que esses atores interpretam como se não tivessem coração, ou tivessem óleo no lugar do sangue nas veias? Não me impressiona o estilo de Petzold, esse embaixador do velho clichê sobre o alemão cool. Não que seja ruim. É pior que isso. É bloco de gelo que não derrete, reunião de burocratas programados para agir de modo autômato. Essa frieza medida cautelosamente faz com que reações que já soam calculadas em filmes nos quais a representação envolve mais calor (como um agradecimento feito quando o agradecido já estava se retirando do recinto e faz uma parada estratégica em sua saída), soem demasiado calculadas, algo que engessa toda a dramaturgia. O mesmo acontece quando um personagem responde a uma pergunta apenas com o silêncio. O efeito é amplificado, torna-se exaustivo. Pior ainda por se tratar de uma história que envolve tensão. Só no final, quando a história se resolve de maneira previsível, temos um vislumbre do que poderá acontecer aos personagens. Mas aí o filme acaba, não antes de um último olhar, quente, mas sob uma máscara de frieza.

Barbara é bem filmado, tem certo charme quando ameaça romper com o tom imposto, mas não tem alma. A questão que o filme trabalha é a vontade de abandonar um país que parou no tempo: a Alemanha Oriental (o filme se passa em 1980). A protagonista é uma médica que foi deslocada para um hospital de uma cidade pequena do interior. Envolve-se progressivamente com um dos plantonistas, e secretamente se encontra com o namorado ocidental que procura ajudá-la em seu desejo de abandonar o país. Sem altos e baixos dramáticos, algo que só mestres da contenção, como Naruse, conseguem realizar com sucesso, Barbara não se desprende da burocracia da Cortina de Ferro, em que os atores parecem cumprir horários e bater cartões, loucos para sair dali e fazer coisas mais interessantes.  

Sérgio Alpendre

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