Ano VII

Um Alguém Apaixonado

quarta-feira out 24, 2012

Um Alguém Apaixonado (Like Someone in Love, 2012), de Abbas Kiarostami

Depois de filmes radicalmente construídos na experimentação da linguagem cinematográfica: os planos sequência dialogados de Dez, os planos sequências realistas e poéticos de Five e o filme fora do filme ou narração no extracampo de Shirin, Abbas Kiarostami resolveu filmar fora do Irã, dado o regime fechado e conturbado do país, dando uma guinada no seu cinema e voltando-se ao que, agora com Um Alguém Apaixonado, título brasileiro para o inglês Like Someone in Love, poderíamos chamar de filmes cinéfilos que homenageiam o lugar e a cultura onde foram feitos.

Se Cópia Fiel é um filme “italiano” de Abbas e uma homenagem ao cinema de Rossellini, com ecos de Viagem a Roma; Um Alguém Apaixonado seria seu filme “japonês” e com referências claras ao cinema de Ozu.

Filmes “italianos” e “japoneses” à mesma medida que o cinema e a cinefilia são outra coisa que não a realidade, mas projeção, cópias, mais ou menos fiéis, de uma verdade e de uma essência outra. E, neste sentido, no que tange à construção, os filmes dessa nova fase de Abbas são bastante próximos a todo o universo que ele construiu ao longo da sua carreira, e remetem a ideia da convenção no plano final de Gosto de Cereja no qual o dispositivo é revelado e o que fica é a ideia de que tudo é cinema, apenas cinema.

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Em Um Alguém Apaixonado, a relação da modernidade com a tradição está novamente presente, mas no contexto japonês, na relação, bastante comum nessa cultura, entre a tecnologia mais avançada e a presença de tradições milenares com o homem no meio, ensanduichado entre os dois polos. A presença das conversas ao celular é uma constante no filme, a secretaria eletrônica chamando idem, os deslocamentos de carro, tão comuns nos filmes de Abbas, também. Fora isso, a personagem feminina, Akiko, a acompanhante de luxo, é um exemplo claro de um ser sem nenhuma autonomia. Uma mercadoria que está ora na mão do seu cafetão, ora fugindo do possessivo namorado, até encontrar o velho professor que lhe dará algum abrigo. Encontro que é o cerne do filme e da oposição que ele retrata.

Este Japão que se moderniza, que deixa de lado, sem deixar totalmente, a tradição, maravilhosamente desenhado em Era uma vez em Tóquio de Ozu, está no filme de Kiarostami em vários momentos. Os recados deixados pela avó na secretária eletrônica e a presença da anciã na praça, colada à estátua, e tão mineralizada quanto esta, a espera da neta; a mulher à janela que espia e cuida do irmão e tudo o que cerca o velho professor, o quadro em sua casa, a sopa que faz para agradar a garota e toda a sua sabedoria de mestre, sabedoria que agora vale pouco em relação ao mundo novo e pós-moderno que se apresenta.

O professor, como a avó, um ser deslocado no mundo da tecnologia, é o personagem mais emblemático do filme. É o personagem do saber, da ilustração, que irá acabar se envolvendo – sabe-se lá porque, por pura solidão talvez -, com a jovem prostituta e com seu possessivo namorado, deixando de lado, ou esquecendo – assim como esquece de mandar para a gráfica a linha do livro que começa com “o homem experiente…”, tudo aquilo que propaga.  

Kiarostami filma esses dois mundos com precisão de mestre. A cena inicial na qual nos apresenta a personagem do filme num bar de Tóquio é toda construída pela costura de diálogos ao telefone e da dança dos personagens pelas mesas do bar, as cenas no carro saindo de Tóquio rumo a casa do professor com Akiko ouvindo os recados idem, além de toda a construção de olhares, personagens e espaços, com todas as sutilezas narrativas que só uma pessoa no ápice da carreira consegue construir. Filme de gênio, ainda que não seja o seu melhor filme.

Cesar Zamberlan

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