Ano VII

La Noche de Enfrente

sábado out 20, 2012

 

La Noche de Enfrente (2012), de Raúl Ruiz

La Noche de Enfrente, filme póstumo do chileno Raúl Ruiz, é um filme estranho no qual a matéria filmada sempre escapa à realidade ou a coloca em suspeição. É, a todo momento, um filme sobre o evanescente, sobre a confusa relação entre realidade e imaginário fundada nas lembranças de um velho que está prestes a se aposentar. E se não bastasse o caráter inventariante destas memórias, o velho, Don Celso, é também um fantasista, um inventor de histórias, dando duplo sentido ao inventário que se processa, e emaranhando ainda mais qualquer tentativa de estabilizar a narração num chão de mais fácil compreensão.

Ruiz extrapola a ideia do próprio cinema no amalgama que tal dispositivo faz entre vida e imaginário, invenção e experiência vivida, mas o faz brincando não com as imagens, e, sim, com a própria biografia dos personagens, e em um cenário estranho, mas bastante terreno, cujos tons de rosa e verde lembram aquelas fotos antigas, colorizadas a mão. O diretor funde o vivido ao imaginado, o real ao lembrado, atando as duas pontas da vida, no melhor sentido Machadiano, e fazendo dessa relação uma matéria memorialística impalpável, fugaz, da qual não se pode dizer ao certo o que é de fato real o que é de fato invenção. Isso se não acreditarmos ou embarcamos, como nos propõe Ruiz, – o que facilita a entrada no filme – na lógica de que tudo é invenção, de que tudo vale.

Pode-se pensar num filme testamento? Sim, por que não? Ruiz constrói um universo cheio de ubiquidades, no qual vida e morte se equivalem, e é difícil determinar quando o personagem está vivo ou morto ou mesmo quem é criado ou não. O tempo, diz Dom Celso, em uma das muitas metáforas construídas pelos personagens do filme, é uma rajada de vento. Mas tal vento pode soprar dentro da pensão onde o futuro aposentado mora e não fora deste. Não há, portanto, rigor, nada que seja impossível neste território construído a partir da força das palavras geradoras de imagens. Ruiz fez um filme metafórico ao extremo, construído na essência do sentido da metáfora, ou seja, o deslocamento de sentido poético. Os personagens o tempo todo se dão com palavras, procuram palavras, brincam com elas, construindo um texto deslocado da realidade, mas sempre muito lírico e bem humorado.

Um filme para se ver sem nenhum compromisso com a realidade fora das telas, sem buscar um fio da história, mas deixando se embaralhar por ela, ainda que algumas soluções visuais sejam pobres e não provoquem aos olhos o mesmo sabor que a poesia e bom humor do texto provocam ou invocam aos ouvidos. Belos, sim, os planos iniciais e finais, que dão conta da imensidão da natureza física, da paisagem. Entre eles, o homem, irreal, sonhador, construindo-se em meio a histórias, inventando-se, fazendo-se e desfazendo-se. Um filme bastante irregular, mas bastante sincero e belo, como boa parte da obra de Ruiz. 

Cesar Zamberlan

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br