Ano VII

A Caça

sexta-feira out 19, 2012

A Caça (Jagten, 2012), de Thomas Vinterberg.

O dinamarquês Thomas Vinterberg não é um bom cineasta, mas é um ótimo polemista. Ganhou fama com Festa de Família, um filme que precisa ser revisto e reavaliado, mas que ficou famoso por ser o desdobramento nas telas do marqueteiro Dogma 95, o movimento capitaneado por Vinterberg e por outro polemista de fôlego: Lars Von Trier, cineasta que na mesma época lançava Os idiotas.

As ideias do Dogma se foram; Vinterberg ganhou o seu pretendido espaço; fez alguns filmes, os mais famosos são Querida Wendy e Submarino, mas nenhum com grande projeção.

Em A Caça, seu filme mais recente, mais uma vez o tema polêmico, a intolerância causada por uma falsa acusação de pedofilia, é maior que o filme e rende mais discussões que qualquer questão narrativa ou estética que forme a trama.

O filme trata da questão da força da palavra, do discurso, não no sentido estritamente religioso e metafísico – o puritanismo exacerbado da sociedade dinamarquesa e seus dogmas religiosos já foram tratados de maneira exemplar em A Palavra, obra-prima de Dreyer.  O tema de Vinterberg é mais a desintegração da família dentro do corpo social. O que o diretor busca, atualizando, ou mais precisamente contaminando tal discussão pelo contexto histórico mundial, é mostrar que a intolerância motivada pela palavra é agora motor para outro tipo de caça às bruxas.  E não pela falta de fé ou por se professar uma determinada fé, mas, sim, pela palavra guiar a acusação contra uma conduta tida como inadequada tendo em vista o que pensa a comunidade, o senso coletivo, e pela simples e brutal força da construção de um discurso poderoso frente a um sujeito fraco e de palavra fraca. 

A palavra do personagem acusado de pedofilia nada vale, ainda que a lei o absolva, pois o que vale é a identidade social construída dele e para ele: a versão que se acopla à sua imagem: a de um sujeito divorciado, fracassado de certa forma, e que, apesar da idade, trabalha numa escolinha infantil, e que, sobretudo, ama e é amado pelas crianças. Tal amor, no avesso do que se poderia imaginar, é lido como perverso, visto que é a perversidade a regra. Perversidade camuflada no sentimento predador dos membros da comunidade em que o acusado vive, comunidade urbana de caçadores que extrapolam tal condição ancestral primitiva, da tradição para um sentimento extremado, animal, e expurgador. Tal deslocamento ajuda na construção da versão da acusação, ainda que ela parta de uma criança problemática, pois se adequa ao desejo de caçar, à selvageria contida, à selvageria embalada pelos ares civilizados, e tão próxima de ser deflagrada quanto o dedo está próximo do gatilho no momento que o olho aponta a caça.

A acusação feita por Clara, que tem o seu amor pueril rejeitado, ou melhor, colocado no lugar certo num mundo em que todas estas questões de afeto estão tão mal colocadas, ganha eco num mundo de adultos infantilizados e predadores por natureza. Clara tem pouca noção do poder da sua palavra, imagina-se tão frágil no mundo, tão desamparada e desassistida, que não imaginava que a palavra dela, alguém que não consegue andar por caminhos tracejados, o que pode vir a ser um sintoma de Transtorno Obsessivo Compulsivo ou uma simples afetação infantil, possa encontrar eco e transformar e transtornar o andamento daquela comunidade e de tantas vidas. De certa forma, a fala dela, como o primeiro tiro de Querida Wendy e o tilintar dos talheres no copo de A Festa de Família, são metáforas do cinema de Vinterberg, um cinema que precisa de um gatilho para explodir e que busca nestes gatilhos a força que as imagens e a sua encenação não conseguem jamais alcançar.

Cesar Zamberlan

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br