Ano VII

Rio – Bad 25

segunda-feira out 1, 2012

O sexual e o Belo (Michael Jackson – Bad 25)

Se tentássemos fazer uma leitura da sedução, libido e sensualidade nos trabalhos de Michael Jackson, sairia o seguinte: o eixo do álbum Off The Wall é de alguém que parece entrar na puberdade. Thriller vem de alguém mais maduro, que sabe o que é o amor, mas ainda assim o romantiza – tanto que o videoclipe da música-tema é um namorico de portão. Bad é um álbum de quem descobre a força do sexo, da libido, seja na frontalidade da letra ou na sonoridade e na pegada do arranjo. Um trabalho de tomada de posições, de afirmações.

Pois até meados dos anos 1980 Michael Jackson deslizou e escapou dos conflitos, buscou a parte da sala que o holofote não alcançava. Com Bad o papo é outro: um trabalho todo calcado na exposição. Não apenas no ser, mas no colocar para fora, seja a pulsão sexual (“The Way You Make Me Feel”), a macheza (“Bad”), o contra-ataque à mídia (“Leave me Alone”).

Álbum a álbum, há uma escalada da libido. Bad é o ápice, em que a fruição do masculino forma um híbrido com a performance corporal feminina de Michael. Basta observar os primeiros versos das primeiras canções dos três trabalhos. De “Lovely is the feeling now”, caminha-se para “I said you wanna be starting something” e se chega a “Your butt is mine!”. Um fala de amor, outro de um desejo. O terceiro é a libido posta em ação. Em Bad, discurso é ação.

Esses versos são claros: se na vida real o menino de cabelo black estranhamente sobreviveria no corpo de um adulto, na música ele morreu. Quem tomou seu lugar foi o homem, que revelaria sua porção andrógina em HIStory. Em Bad, o eixo não é de um artista que pega seu público pela cintura e singelamente lhe chama para apreciar. Não, o movimento é outro: o da encochada.

Em Off the Wall e Thriller, trata-se de sugerir o desejo em frases como “I want to rock with you all night”, “Girlfriend, I wanna be your boyfriend”, “I want to love you, PYT, Pretty Young Thing” ou pedir a autorização –  “Darlin' Let me Hold You”, “Let Me Fill You With My Dreams”. Em Bad abandona-se o meio de campo, parte-se para o ataque: “I'm telling you, just watch your mouth”, “You really turn me on”, “I don't care what you talkin' about, baby”, “You kiss me then, ooh, the world”.

Spike Lee percebeu o que há de sexual, de agressivo e de exposição nesse álbum e fincou Michael Jackson – Bad 25 nessa seara. Este é o último LP da carreira solo adulta de Michael em que é possível perceber uma coerência conceitual que permite ler o trabalho como um todo, não apenas música a música. Off The Wall, Thriller e Bad pertencem ao mesmo arco dramático. Entre Dangerous (1991) ao póstumo Michael (2011) esse vínculo não existe: são peças isoladas e de fraqueza mais explícita, dada a quantidade sempre maior de faixas por álbum.

Limpar o caminho para o Belo

Em vez da superfície, o que não é visto. Em vez do holofote, quem está por trás da luz. Em vez das vozes de autoridade, os técnicos. O primeiro gesto de Spike Lee é limpar o caminho dos que tentam colar na estrela como penduricalho de árvore de natal. O segundo é determinar com clareza quem pode contar a história no papel de agente e quem é receptor. O terceiro é jamais perder de vista que se trata de um filme sobre música.

Definidos esses eixos, o passo seguinte é investigar a feitura de todas as canções, das exaustivamente tocadas às de transição, mais fracas. Cada uma tem seu universo particular, o que abre a barragem para a fruição da genialidade. Aqui entra o alumbramento do documentário: testemunhar a materialização da arte, do Belo. Pois no fim das contas é disso que se trata o filme: presenciar o Belo.

E quando isso acontece, a palavra não dá conta de traduzir a experiência. Ainda mais porque com Michael Jackson a experiência de ser tocado pelo Belo é mais avassaladora. Pois além da contemplação com a beleza sendo feita, suas canções convocam para a pista, dançar, pular, se mexer, cantar junto. A música de Michael e as canções de Bad nos colocam simultaneamente como observador externo da cena e seu centro.

A força de Michael Jackson – Bad 25 está em articular os atores do processo de maneira que todos desemboquem no gênio. É essa estrutura de priorizar os bastidores em vez dos holofotes que permite o espectador atento se realizar tanto na esfera direta e explícita (bater os pés acompanhando as batidas das músicas) às mais elaboradas (fazer análise da conjuntura musical e colocar todo o álbum em esferas outras que não a musical, como a da libido).

Com algumas dezenas de entrevistas e centenas de horas de material caseiro, a perspicácia de Spike Lee também se faz perceptível em como ele nos entrega as performances de Michael Jackson a conta-gotas. Não há a exaustão da imagem nem a supressão integral: a quantidade necessária para criar a ansiedade, satisfazer a expectativa e construir o clímax.

Sem sombra de dúvida os momentos mais emocionantes do documentário são as apresentações de Another Part of Me – canção apenas mediana, muito inferior à excluída Streetwalker, mas com uma inigualável energia na coreografia do show – e Man in the Mirror.

Michael Jackson – Bad 25 esmiúça a raiz de cada canção. E revela algo às vezes esquecido: que o vocabulário artístico de Michael Jackson não é fruto só de inspiração ou do acaso, mas de trabalho árduo. E que ele não inventou a partir do vazio, mas se apropriou de muitos signos – não é difícil ver o que há de Minneli, Astaire e A Roda da Fortuna em Smooth Criminal.

Mas o gênio não se perde em citações. Basta tomar aquilo que lhe inspira como seu, criando um outro tecido artístico. Esse é um dos pilares de toda a obra de Michael Jackson e também uma das percepções que o documentário de Spike Lee instiga.

Heitor Augusto

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br