Ano VII

Ted

sábado set 29, 2012

Ted (2012), de Seth MacFarlane

Seth MacFarlane, o criador do seriado de animação The Family Guy, recebe o espírito de Joe Dante (que, todavia, está vivinho da silva) e bebe na fonte dos irmãos Farrelly nesta sua estreia no cinema. Seu filme dialoga ligeiramente com Gremlins (os dois) e Pequenos Guerreiros, de Dante, e com o estilo escatológico dos diretores de Debi e Lóide, apesar de ficar muito aquém nas dimensões políticas e anárquicas de suas provocações. Mesmo assim, um deputado desavisado quis aparecer e pediu a proibição do filme, felizmente negada. Não entendo como gente desse nível chega a  tal posição, mas está cada vez mais frequente nesta terra descerebrada. Ted, enfim, pode ser menos provocador do que os mais provocadores filmes de Dante, e mais palatável em relação às demências dos Farrelly, mas nestes dias em que a ignorância impera, ainda consegue incomodar alguns tolos.

E a provocação, ainda bem, não para na simples confusão de valores do ursinho usuário, bonitinho de voz sacana, conquistador de primeira. Suas estocadas atingem vários lados do mundo do entretenimento. Em uma das mais suaves, Ted afirma que Sam Jones, protagonista em Flash Gordon, filme adorado pelos dois amigos inseparáveis, amplia a noção de interpretação. O próprio Jones aparece como ele mesmo, outrora um jogador de futebol americano e astro do quintal de nerds, agora junkie e chegado numa briga. Tom Skerritt, coadjuvante de luxo no cinema e ator de TV desde os anos 60, também é ironicamente endeusado. Ryan Reynolds aparece, sem crédito, como o amante de um machão estranho (mais parece um robô) que se revela homossexual.

Tem mais. Ted vai procurar emprego de caixa num supermercado, porque é forçado pela namorada de seu amigo a mudar de casa. Ofende diretamente seu empregador, que elogia a audácia e o contrata, sempre promovendo-o depois, a cada nova ação de rebeldia ou ousadia (como transar com uma outra caixa de supermercado, em pleno horário comercial). Comentário mordaz sobre a selvageria do mercado de trabalho, dentro do qual importa menos o caráter de uma pessoa do que sua cara de pau (ou sua capacidade de bajular, mas isso não vem ao caso). O urso ainda dirige automóveis, com a ajuda de alguns aparatos. Ao sair com tudo por uma rua movimentada, pede desculpas ao motorista que buzinou dizendo que estava mandando um tuíte. Ted é internauta, e, enquanto está na internet, é irresponsável, como boa parte dos internautas. O coquetel de referências contemporâneas que o filme promove é tratado com bem-vinda ironia.

Há ainda o lado escatológico, que por vezes pende para a tolice. Os irmãos Farrelly tornaram moeda corrente coisas como cocô, xixi e peidos, o que permite que o garanhão rico se alivie soltando um logo depois de ter sido abandonado pela mocinha, ou que em certo momento se converse sobre namorados peidarem na frente um dos outros. Da mesma forma, uma tendência à bobagem infantil perpassa alguns momentos do filme, combatendo a imagem do urso de pelúcia como um trintão bon vivant, e ao mesmo tempo associando-o ao comportamento sempre infantilizado do homem médio. Hoje em dia parece necessário falar de coisas tidas como nojentas quando se filma uma comédia, como se só isso a estabelecesse como um fruto de seu tempo (é um fenômeno que, de resto, observamos mesmo em comédias românticas mais ingênuas). Raramente essa prática se confirma como algo realmente necessário, o que marca a diferença dos Farrelly para os outros diretores que a exploram.

Mas se há um ponto realmente fraco no filme é a participação de Giovanni Ribisi, caricatural como um maníaco ameaçador que quer presentear seu filho com o ursinho. O momento em que Ted é raptado afasta o filme do que ele tem de melhor, que felizmente é o que fica conosco após a projeção: os comentários certeiros sobre o estranho mundo em que vivemos no século 21, e sobre a eterna infantilidade da maior parte dos homens.

Sérgio Alpendre

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br