Ano VII

Brasília – 4º Dia

domingo set 23, 2012

4º Dia – A periferia ganha o centro? (Doméstica)

O aspecto mais revelador do mundo investigado em Doméstica está na ausência. No que não é dito, no que não está no filme: assumir a relação conflituosa, simbiótica e de poder que reside entre a empregada doméstica, centro desse documentário, e seus empregadores – os patrões.

Pois Doméstica não é um documentário que formalmente entrevista, mas propõe uma experiência: que adolescentes registrem o cotidiano das empregadas domésticas que trabalham em suas casas. O registro pode ser a entrevista talking head, a câmera que segue a rotina da casa, a performance explícita das protagonistas etc.

O gesto de deslocar a observação já implica possibilidades de leitura de quem filma e de quem é filmado. Como os meninos/meninas enxergam quem os acompanha desde criança? Como as empregadas se comportam com a câmera?

Não há o confronto explícito. Nenhuma empregada reclama frontalmente da sua condição na casa. Todas dizem que as patroas/patrões são bons. Nenhum dos empregadores delimita, no discurso, quem manda e quem obedece. “Ela é como se fosse da família”, “ela come na mesa conosco”, dizem eles. Inclusive uma das empregadas – negra – participa do shabat da família judia para a qual trabalha – e gosta.

Nos detalhes é que Doméstica ilustra o teatro, talvez conveniente para ambas as partes, do poder de uma relação que costumeiramente patrão e empregada se esforçam em apagar. No recorte do filme é comum que todas as empregadas (apenas um deles é homem) tenham participação fundamental na criação dos filhos da patroa, mas sequer conseguem estar próximos de seus próprios rebentos (uma das empregadas ficou três meses sem ir em casa e seu filho morreu no meio do caminho); todas comem à mesa com os patrões (o que supõe uma intimidade), mas na hora de dormir elas têm em comum um quarto minúsculo, apertado, sem janelas;

O mais brilhante subtexto que reforça a relação de poder implícita está no cenário: mesmo com todos os personagens dizendo como as empregadas são incorporadas no tecido da família, quando os adolescentes decidem fazer entrevistas tradicionais com elas, nenhum as coloca no lugar central da casa: a sala. Ou estão na cozinha, ou no quarto, ou no carro. Na sala, ninguém. Precisa dizer mais?

Mas não sejamos maniqueistas porque Doméstica não é dogma, mas embaralhamento: ao mesmo tempo que o lugar da entrevista conota a posição periférica das empregadas, elas são o centro das atenções da câmera: dançam para ela, falam para ela, se abrem para ela. Uma delas até diz para a patroa algo como “o filme é sobre mim, não sobre você”.

Na concepção do filme – montar um mosaico com imagens registradas no espaço interno por garotos, em vez de alguém do cinema – já está a chave da própria relação de poder: ao mesmo tempo que as empregadas estão no centro, quando a porca torce o rabo elas são relegadas ao lugar da periferia da casa.

Uma simbiose, um jogo de poder e afeto sofisticado. Não é novidade do ponto de vista político, mas sim nas possibilidades do cinema falar disso. Doméstica representa uma evolução do olhar de Gabriel Mascaro como diretor. Da divisão clara da vilania e da santidade em Um Lugar ao Sol ele vai para um registro em que o poder é mais bagunçado.

Para quem encontra semelhanças na proposta desse documentário e Pacific, uma ressalva: a diferença fundamental é que, pelo maior apuro de quem registra as imagens em Doméstica, é possível até falar em plano (obviamente no sentido cinematográfico), o que em Pacific me parece mais problemático.

Heitor Augusto

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