Ano VII

Brasília – 3º Dia

sexta-feira set 21, 2012

3º Dia – Dormir com um filme, acordar sem ele (Boa Sorte, Meu Amor, A Mão que Afaga, Otto)

Parte I – os que ficam

Nem sempre é assim, mas quando acontece é gostoso. Dormir com um filme, acordar com ele e dele se alimentar alguns dias. Após três dias de mostra competitiva, já começa a ficar claro os filmes que ficam, que revisitamos nas memórias, e os que se esvaem.

Ficam, entre os longas, Eles Voltam (mesmo que irregular) e A Memória que me Contam (justamente porque todos seus problemas servem como diagnóstico de uma situação). Antes de “bom” ou “ruim”, são filmes que gostei de ter visto. Ontem foi exibido Boa Sorte, Meu Amor, longa que, na primeira noite dormida com ele, está vivo. Será interessante observar sua imanência.

Daniel Aragão (Não me Deixe em Casa, Solidão Pública) não esconde a pretensão alta de seu filme. E obviamente é complicado manter um primeiro longa no topo, com regularidade em todos os planos, em todas as cenas.

A curiosa equação de Boa Sorte, Meu Amor é se estabelecer numa partitura da convenção (jornada do herói em três atos), mas ao mesmo tirar o espectador de um lugar previsível. Que não se banalize conceitos e adjetivos como invenção, ousadia ou vanguarda pois o filme não pertence a esse registro. Mais apropriado dizer que ele tem um olhar particular para coisas comuns (o amor, a terra e o asfalto, o presente e o passado, o silêncio e a som).

A trilha (em especial a canção-tema, de levada soft Motown) e o desenho de som fincam as bases do que mais interessa no filme. O que leva ao fundamental, porém costumeiramente esquecido, conselho: calma e controle da euforia. Mesmo bonito, surpreendente em vários momentos e com trechos marcantes, Boa Sorte, Meu Amor não é tão maduro, inteiro, regular e pronto. É um promissor primeiro filme.

Parte II – os que não ficam

Otto é o segundo filme consecutivo de Cao Guimarães em que a experiência se encerra na sala, não vinga nos dias seguintes. Isso num cineasta cuja produção sempre teve uma capacidade forte de colar na minha retina – lembro com clareza do que aconteceu quando vi Rua de Mão Dupla, Andarilho, A Alma do Osso.

Desde Ex Isto um pouco do encantamento se perdeu. Ali, mesmo com o deslumbre com a performance de João Miguel, não acreditei num filme cujo discurso diz querer embaralhar a racionalidade, mas é milimetricamente calculado para provocar efeitos. Já o curta Limbo me pareceu uma reiteração dos lugares, suas coisas e a vida que há nelas, cuja via de acesso é a sensibilidade.

Com Otto, a distância ficou maior. Não por ser calcado numa experiência pessoal, a da paternidade, pois o que é subjetivo fala a muitos outros. Mas pela incômoda sensação de que eu já vi esse filme em outros filmes de Cao. Amigos da crítica me dizem que é justamente o contrário, que Otto traz coisas novas (um protagonista em silêncio, por exemplo). E Cao diz que este pode ser um divisor de águas. Assim espero porque o que tenho visto é não mais a coerência, mas uma reiteração.

Parte III – os que ficam por linhas tortas

Está todo mundo louco, este é o diagnóstico possível da reação do público com o curta A Mão que Afaga. Na tela está um filme profundamente melancólico, mas a plateia do Festival de Brasília pareceu assistir a uma comédia. Do humor negro, o público percebeu o humor, mas se esqueceu do negro.

Pois o curta deliberadamente procura o incômodo, assim como a solidão da mãe e de seu filho são latentes. O tom marrom adormecido dos móveis, o close que realça o que há de estranho na atriz, o contraste do enfeite que diz “Parabéns Lucas” com a completa ausência de amigos, a necessidade de um urso animador de festa para se ter alguém para tocar. Em suma, um filme triste – e o plano do urso dançando? –, mas que parece ter permanecido para o público por linhas tortas como um filme nervosamente engraçado.

Heitor Augusto

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