Ano VII

O Estado das Coisas

segunda-feira set 3, 2012

O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge, 1982), de Wim Wenders.

O Estado das Coisas é um dos títulos mais importantes da filmografia de Wim Wenders. Ganhou o leão de Ouro em Veneza em 1982 e quando passou por aqui, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, foi logo alçado à condição de cult.

Realizado durante as filmagens de Hammett, o filme norte-americano e problemático de Wenders produzido por Coppola, O Estado das Coisas foi, de certa forma, uma maneira encontrada pelo diretor para exorcizar e problematizar todos os demônios provenientes das filmagens complicadas nos Estados Unidos. Tal exorcismo, ou análise, acabou gerando uma obra-prima e um filme fundamental para entender as relações entre cinema norte-americano e cinema europeu, mas não apenas isso.

O Estado das Coisas começa com um filme de ficção científica, “Survivors”, um remake de The Day the World Ended, filme de 1956, de Roger Corman – que depois aparecerá no filme como um advogado – mas, numa virada surpreendente, num belíssimo plano no qual a criança do filme é beijada na testa por um homem estranho, sem as roupas futuristas, percebemos, pela mudança de tom do preto e branco, que todo aquele início fazia parte do filme dentro do filme e que o homem, Fritz, é o diretor da película dentro da película e a menina, uma atriz.

Em “Survivors”, os personagens fogem em busca de um lugar no qual possam escapar do derretimento, lugar que o chefe do grupo sabe que não existe. A fuga e falta de perspectiva se relacionarão, de maneira bastante direta, com as duas partes seguintes do filme, e Wenders continuará alterando registros: da ficção cientifica B, no melhor estilo Corman, para as crises existenciais e de comunicabilidade no melhor estilo europeu, vide Antonioni e, por fim, para o filme de suspense e policial como o melhor cinema norte-americano, mas sempre com um estilo próprio na composição das imagens e uma amarração muito precisa dos temas que eram a fonte de seu trabalho à época.

Voltando a “Survivors”, quando as filmagens são interrompidas porque o negativo acabou e o produtor do filme, Gordon, desapareceu, a equipe é liberada e se dispersa pelo hotel, fantasmagórico, abandonado, às margens da Praia Grande em Sintra, Portugal. A paisagem, sempre tão importante nos filmes de Wenders, aqui ainda mais desoladora e desértica, serve para que os atores, sem destino e à espera da retomada das filmagens, se espalhem pelas imediações do hotel, dada a condição de atores sem papel, sem um script a seguir.

O universo dos personagens, no cinema atuando e guiados, e, fora dele, sem papel e à deriva, acaba servindo como uma metáfora para as relações entre o mundo ficcional do cinema e a vida fora dele. “A vida passa com o correr do tempo, sem precisar se transformar em histórias, ou se traduzir em histórias”, diz o filme, mas no cinema não, porque, como vai lembrar Gordon depois, “fazer cinema não é mostrar a vida passando”. Em outro momento do filme, a questão será também problematizada: “uma vida sem história não vale a pena viver”. Tal discussão, que já está no cerne de Alice nas cidades (ver texto nesta mesma seção de DVDs), aqui ganha mais corpo e complexidade.

Fritz, ao voltar aos Estados Unidos para encontrar Gordon e uma resposta, parece, do ponto de vista simbólico, buscar, como muitos, a chave para solucionar enigmas metafísicos que destravariam todo o pavor humano frente ao desamparo e à falta de sentido da existência e o faz enquanto toda a equipe espera, imobilizada, pela falta de resposta. O mundo representado pelo cinema, encarnado no filme que está sendo construído, acaba sendo igualmente uma representação alegórica da vida e da situação do homem na terra pela visão de Wenders, ou seja, desterrado, e a espera de uma resposta que não se sabe se virá ou não para que se possa saber o papel a seguir e para onde ir – a busca dos sobreviventes de “Survivor”.

E, se em “Suvirvor”, o filme dentro do filme, o perigo é o derretimento, agora, sem a película para terminar o filme e à espera de Fritz, que parte em busca de Gordon, o produtor, ou aquele que faz com que as coisas possam acontecer, a equipe corre o risco do “congelamento”, de permanecerem presos a uma vida sem história, sem ação, frisados, e sem nenhuma explicação em relação ao futuro, até porque, como na vida, não temos tais explicações.

Portanto, se na primeira parte do filme a necessidade de fuga move os personagens e se na segunda, a paralisia é determinante; na terceira, Fritz precisa, como os heróis do western – Rastros de Ódio é citado em vários momentos do filme – abandonar seu rebanho e partir, procurar Gordon para entender o estado das coisas, para fazer as coisas andarem na história e na vida. Tal relação, como já sugerida aqui, lembra a da criatura que vai até o seu Senhor em busca de respostas. Mas o todo poderoso Gordon, um produtor judeu importante na indústria cinematográfica norte-americana, caiu em desgraça, acumula dívidas e é jurado de morte, justamente por ter escolhido mal, por ter escolhido Fritz, um diretor europeu com alguns filmes, para fazer “Survivor”, seu primeiro filme norte-americano. Nem é necessário esmiuçar os pontos de contato com a realidade, ou seja, com  Wenders, Hammett e experiência do cineasta alemã na indústria norte-americana, tendo Coppola como produtor. E, novamente, do ponto de vista simbólico, Gordon como um deus decaído coloca suas criações, Fritz, “Survivor” e toda a equipe que ficou em Portugal no mais desalentador dos mundos.

Tal busca por aquele que detém as respostas não se dará, porém, como no melhor dos épicos e o filme dialoga também com essa estrutura narrativa. E Wenders muda novamente, nesse terceiro momento do filme, o registro para um tom mais tenso, vibrante e com mais vigor, em contraste com a etapa anterior nas praias de Sintra. No melhor estilo dos filmes de perseguição e suspense norte-americano, com várias referências a filmes B, Wenders desenha sequências geniais, caso da perseguição a Fritz com a câmera no alto do prédio e a sequência final, uma das mais espetaculares da história do cinema. Nela, Fritz e Gordon num velho trailer pelas ruas de Los Angeles, conversam em tom amistoso sobre o que é o cinema, sobre o que é o cinema norte-americano e o erro de ter escalado um cineasta europeu para fazer um filme na América e, sobretudo, um filme em preto e branco, com a cobrança que lá existe por um filme que tenha paredes bem construídas, como uma casa, e que se alicerce em uma história cheia de ação e cores (só essa sequencia e discussão final mereceria um texto à parte).

Concluindo, a câmera que tomba com Fritz no final do filme, do ponto de vista metalinguístico, me parece a própria imagem da impossibilidade, para Wenders, de sintetizar dois cinemas tão diferentes, a enorme fenda entre a indústria hollywoodiana e o cinema europeu de arte que ele vivia e via tão profundamente. Do ponto de vista metafísico, remete à sempre desastrada e infrutífera tentativa daqueles que ousam buscar respostas quando o que existe são apenas e tão somente perguntas.

Cesar Zamberlan

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Ver texto sobre Alice nas Cidades

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