Ano VII

Na Estrada

sábado jul 14, 2012

Na Estrada (On the Road, 2012), de Walter Salles

Há um descompasso entre o que Na Estrada é e o que ele descreve. Isso porque Walter Salles optou por uma abordagem mais sóbria para um momento, e uma geração, que representa o oposto da sobriedade, do controle, do estar contido. Essa disritmia faz com que o filme seja sonolento e artificial.

Adaptar On The Road, de Jack Kerouac, obviamente não é fácil. Não apenas porque o livro ganhou um status de obra-prima, mas principalmente por ser paradigmático como linguagem. Falar de On The Road é acessar um universo simbólico que toca muita gente. Pensar numa leitura cinematográfica do livro é lembrar também das tentativas frustradas, incluindo a que seria feita por Coppola, Gus Van Sant e Johnny Depp no começo dos anos 1990.

Pois bem, a memória que se tem do livro de Kerouac é de uma obra libertária. E o filme de Walter Salles tem qualidades, mas “libertário” não está entre elas. Esse é o mais sério ruído.

On the Road ainda hoje representa ao menos duas grandes transgressões: a do comportamento de personagens à margem do Sonho Americano (personagens estes que são espelho de Kerouac e a Geração Beat) e principalmente da linguagem. A prosa de Kerouac é um convite à implosão da sintaxe, de um ritmo marcado pelos sons, por sentenças e passagens que não necessariamente trabalham na chave causa-efeito.

Tão importante quanto os acontecimentos da jornada intensa de Sal, Dean e Marylou é a sua transformação em linguagem. É a liberdade do livro na forma e conteúdo. É não apenas falar de liberdade, mas ser livre como obra. É por isso que On the Road inquieta tanto os fãs quanto os detratores, que o acusam de subliteratura.

O filme, porém, escolhe outro caminho: transfere a transgressão para os atos dos personagens enquanto ele, o filme, fica ali sossegado, tomando um drink à beira de uma piscina rodeada de boa decoração, elaborando racionalmente o que é a liberdade.

Um hiato entre personagens que se jogam numa viagem vistos pelos olhos de um filme receoso de dar um passo no escuro. Enquanto Sal, Dean e Marylou piram no uísque com benzedrina, o filme toma no máximo uma cerveja. Esta distância é o principal elemento que torna pouco crível Na Estrada como leitura da liberdade.

Uma coisa é rebaixar o tom para que surja a essência. Outra é permanecer numa zona de conforto formal acomodada em apenas descrever atos rebeldes. Ao espectador, resta uma apreciação sem incômodos e desafios. Sequer é preciso andar em direção ao filme. Não há riscos algum na experiência de assistir a esse filme. Então, que liberdade é essa? Liberdade sem risco?

Há esboços, nas mais de duas horas de filme, de mais lirismo, abordagem sensorial, de risco. A montagem de interrupções bruscas é um deles, cujo ritmo lembra até o venenoso comentário de Truman Capote sobre o livro de Kerouac (“that isn't writing, it's typewriting”). Mas essa mesma montagem, ousada por um lado, vai em contradição com a essência do enredo: se o que importa não é o destino, mas sim a viagem, por que o filme identifica todo e qualquer lugar em que os personagens aportam?

Outro rascunho de frescor da forma está nas cenas musicais, que parecem tentar beber no universo músico-cinematográfico de Cassavetes, especialmente no começo de sua carreira, de tentar filmar como o espírito do improviso do jazz. Assim como a fotografia, que almeja um diálogo com o olhar que o próprio cinema construiu para o interior dos Estados Unidos – é possível enxergar um tributo tanto a Paris, Texas quanto a Sem Destino nas imagens de Na Estrada.

Mas dentro de um filme sóbrio, que não traz a liberdade para sua textura, esses gestos são hiatos, intervalos, interrupções, respiro de criatividade num todo sem muita vida.

Heitor Augusto

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