Ano VII

Homenagem a Reichenbach

segunda-feira jul 9, 2012

Homenagem a Carlos Reichenbach (1945-2012)

No começo de 2006, entrevistei o diretor Carlos Reichenbach para a extinta Revista Paisà, que eu editava com Alexandre Carvalho dos Santos.

Eu e Carlão nos conhecemos na antiga lista de discussão Infancinéfilos, em 2000. Quando o encontrei pessoalmente, ainda no mesmo ano, ele me disse que achava inicialmente que meu nome, Alpendre, era fake. Que eu era alguém criado por outro integrante da lista. Dava altas risadas sempre que lembrava dessa antiga sensação.

Na última vez que o encontrei, Carlão deu uma aula especial na escola de cinema Inspiratorium, onde coordeno o Núcleo de História e Crítica. Estava bem, apaixonado como sempre, mostrando suas raridades com a generosidade habitual e entregando seu conhecimento aos alunos.

A entrevista publicada aqui na íntegra pela primeira vez, saiu no número 1 da Paisà, capa O Segredo de Brokeback Mountain. Na ocasião, fomos a um boteco em São Paulo, onde tomamos algumas cervejas e passamos horas conversando sobre cinema, e também sobre a vida. Alexandre Xavier estava conosco, mas não parava de levantar para tirar fotos. Ele era o fotógrafo não remunerado (porque era amigo, e porque a Paisà era deficitária). Suas fotos, por sinal, só estão disponíveis na versão impressa da Paisà.

Como as palavras serão sempre insuficientes para dar conta da perda de Carlão, como era conhecido por todos, resolvi republicar a entrevista mais de seis anos depois, com o aval dos coeditores Bruno Cursini e Cesar Zamberlan.

(S.A.)

Como foi a estréia de Bens Confiscados nas telas brasileiras?

Foi uma estréia absolutamente pontual. O cinema nacional está confinado a um circuito de arte. Mesmo quando esse circuito abre as portas para o cinema comercial, quem domina é o cinema americano. Vai ser um pouco o trajeto do cinema brasileiro daqui pra frente, se não tomarmos posições mais radicais de exibição. Hoje em dia o filme estréia em uma semana, mas na semana seguinte já entra um blockbuster e o filme pequeno fica em só um horário. A única saída viável é conseguir que os filmes brasileiros entrem com o preço de uma passagem de ônibus.

Mas quem viu o filme gostou bastante, não?

Nem tanto. É um filme para dividir opiniões mesmo. Pode não agradar a quem tenha preconceito contra o melodrama. Pode provocar um estranhamento por causa da interpretação anti-naturalista de grande parte do elenco. É uma besteira isso. Acho que o cinema exige uma visão crítica dos atores em relação aos seus personagens ou um certo distanciamento. É abominável a forma com a qual a televisão vem influenciando a interpretação dos atores nos filmes. Na televisão o naturalismo é a mimetização do que “eles” acham que é o real.

Mas existem exceções, como Cinema Aspirinas e Urubus, Cidade Baixa

Não é possível colocar no mesmo patamar formas tão diferentes de representação e de enxergar o homem brasileiro, como Cidade Baixa e Cinema Aspirinas e Urubus. Um é a negação do outro. Em Cidade Baixa a câmera não respira nunca, em momento algum ela se detém em um objeto, numa porta vazia, numa janela aberta … O filme de Marcelo Gomes é diferente. As cenas duram mais do que o usual no cinema narrativo convencional; dando tempo para a reflexão. Hoje se faz aqui um cinema que não dá chance para que “caia a ficha do espectador”. O cinema é como a música: precisa de pausas, de repetições pontuais, de silêncio, de essências e excessos….

Mas é raro encontrar um plano de detalhe, com sangue, suor, como em Cidade Baixa. Não me parece linguagem televisiva.

Confesso a você que saí do cinema um pouco irritado por conta da projeção digital. Projeções digitais sempre me causam a impressão de estar à frente de uma grande televisão. Sem frescura, toda vez que saio de um filme brasileiro descontente, isso me estraga o dia. Fui assistir Cidade Baixa com a certeza de gostar, porque acho Onde a Terra Acaba, do mesmo diretor, uma preciosidade. Talvez eu esperasse um filme de ficção com a mesma ênfase divagatória, poética e desencantada do documentário. Eu não sou contra o naturalismo, pelo contrário. Adoro Rossellini, Zurlini e os filmes realistas de Buñuel. Mas sou contra a mimetização do real e o mau naturalismo herdado da televisão. Na tv tudo é excessivamente construído para seduzir. Em Cidade Baixa, os atores estão sempre tentando parecer simpáticos e verossímeis. Há um certo desequilíbrio ausente no filme e que deve existir em qualquer obra de arte. É engraçado que se está criando na crítica um tipo de olhar muito complacente com esse tipo de dramaturgia. Assumem que aquilo pode ser “o” caminho para o cinema de grande público. Como se fossem donos do segredo do chamado filme popular. Não existe mais filme popular, existe filme comercial. Cinema popular era o cinema que custava uma passagem de onibus. O pobre não vai mais ao cinema. Esse publico só vai ser recuperado  quando o cinema voltar a ser a diversão mais barata que existe. Estamos fazendo cinema para os filhos da TV. O cinema oficial de hoje, que é recebido com uma complacência absurda pela crítica, é escravo das técnicas de sedução utilizadas na TV. Durante décadas e décadas o cinema foi o manancial da televisão, e não o contrário. Acho realmente deprimente certo cinema recente, subserviente a modelos, com raras e honradas exceções.

Harmada seria uma delas?

Mas o Harmada é do Capovilla, que é um autor na acepção do termo, assim como o Saraceni, de O Viajante. Tem o Walter Lima Jr também. São cineastas que não abrem mão da sua linguagem, do seu modo de ver o mundo; eles não fazem concessões. O grande compromisso é com eles mesmos, como realizadores. Há uma coisa que me incomoda muito nesse negócio de retomada: o discurso do mercado como panacéia. Neste discurso os filmes não precisam ser bons; precisam “dar certo”. Toda vez que esse viés toma conta do pensamento cinematográfico, o cinema vai pra cucuia. Eu sempre digo que o melhor filme brasileiro que vi nos últimos anos foi O Viajante, do Saraceni. O Viajante é uma pérola arremessada aos porcos, um filme audacioso, por vezes ingênuo, apaixonado e despudoradamente católico. Em O Viajante, Saraceni é o “cavalo” de Rosselini. Tanto que é o único filme recente que incluí no livro dos 60 notáveis filmes brasileiros.

Reclamaram muito dos balões vermelhos…

…mas é a cena mais poderosa do filme. As pessoas parecem que não têm mais predisposição para o vôo livre, a poesia. A cena da Marília Pêra brigando com Deus é uma das mais corajosas do cinema contemporâneo; sua beleza está no excesso, no barroquismo, na teatralidade. É isso que eu não vejo em filmes brasileiros recentes: nenhum diretor exige e nem o ator se deixa enlouquecer pelo personagem. O cinema mundial está absorvido por um sistema viciado. Raramente se encontra uma gramática mais ousada…veja o exemplo do cinema da Coréia do Sul. Talvez seja o mais interessante do Oriente, talvez até do mundo. Houve um investimento muito grande do governo no cinema coreano, e vemos filmes originais, sem barreiras, limites ou censuras. Vi em Paris um filme que fala do golpe de estado…

A Última Transa do Presidente?

Exatamente. Magnífico. Pra você ver…tem a série da vingança (Chan-Wook Park, diretor de Oldboy, o segundo da série), uma aposta no cinema de gênero, na diversidade. Tocam em temas tabus, como o Mentiras. Eu estive em Locarno, há cinco ou seis anos e lá estava sendo lançado o Festival de Pulsan, da Coréia, com um trabalho pesado de divulgação desse novo cinema do oriente. A importância atual do Festival de Pulsan praticamente suplantou a do festival de Tóquio. Eles apoiam o cinema como um todo, na produção, na divulgação, no pensar cinematográfico… é um exemplo. Todo um conjunto que estimula o espectador de renda baixa a ir ao cinema, o que não acontece no Brasil. Li recentemente que o cinema coreano ocupa mais de cinquenta por cento do próprio mercado, graças às leis de proteção. Os americanos vivem pressionando.

Com entradas de cinema custando 16 reais é um milagre termos filmes que tiveram mais de 5 milhões de espectadores.

Mas você duvidava do sucesso desse filme? (Nota do editor: falávamos de Dois Filhos de Francisco).

Eu achava que ia ficar no mesmo patamar do Carandiru.

Eles fizeram um cheque visado. Filme de duplas sertanejas, quando feito no momento certo e lançado no momento certo, é sucesso. É como best seller. O cinema do mundo inteiro se alimenta da possibilidade de sucesso que um best seller representa.

Você gosta do filme?

Ainda não o vi. Preciso pegar em dvd. Não tenho preconceito algum com esse tipo de filme regional. Aprendi a gostar de música caipira convivendo com duplas, trabalhava em produções como No Rancho Fundo (1971), de Osvaldo de Oliveira, meu amigo pessoal e o cara que me ensinou fotografia. Também Sertão em Festa (1970), onde comecei trabalhando de diretor de produção. Ali tive a oportunidade de conhecer a obra de Tião Carreiro e Pardinho. Quando fiquei amigo do Ivan Lins ele me contou que também começou a apreciar a música caipira ouvindo Tião Carreiro e Pardinho. Ora, fora valores antropológicos e folclóricos existe uma exuberância harmonica rara nas canções interpretadas por eles e por Moreno e Moreninho, que são menestréis da Folia de Reis.

Algumas duplas passam a fazer música romantica, não mais caipira. O que é uma pena.

Você quis dizer música brega, o que nada tem a ver com música regional. O sucesso de Sertão em Festa foi enorme. Quis botar esse filme no livro porque acho que de todos os filmes que tentaram mostrar a beleza da música caipira foi o que melhor captou o espírito do gênero.

Você foi ator nesse filme?

Fiz uma “aparição carinhosa”. Acho que ator mesmo, eu só fui em No Rancho Fundo. Eu sou um péssimo ator.

Mas no Vampiro da Cinemateca você está muito bem…

 Mas o Vampiro é uma farra. Um happening. É um filme muito livre…

…a homenagem à pornochanchada brasilieira…

Sabe como nasceu essa cena? Em cima da música do Walter Franco, "Eter-na-mente". Resolvemos encher a minha boca de sangue e espirrar para todo lado. Aí ele me filmou bem de perto e mandou eu contar uma história escabrosa. Eu falei de um marinheiro tarado, bárbaro e sanguinário, ou seja, um monte de besteira, coisas comprometedoras até hoje (rs). Aí o Jairo (Ferreira, crítico e cineasta), no dia seguinte, resolveu se masturbar e se auto filmar, dizendo que era uma homenagem a pornochanchada brasileira. Outro exemplo: uma tarde o Jairo me convidou para ir na casa dele e eu levei a minha mulher. Ele disse que queria filmar nós dois juntos e então eu sugeri: vamos filmar um poema do Mao Tsé-Tung, porque eu estava com um livro de poesias dele na minha bolsa. A Lygia. minha mulher, se pintou de chinesa e ficou lá recitando enquanto eu vesti um terno, coloquei óculos escuros e fiquei tomando uma coca-cola gigante no gargalo. Um autêntico happenning. Na edição o Jairo colocou uma música do Alice Cooper em cima disso tudo e a seqüencia ganhou um sentido inesperado, político, senão deflagrador. O Jairo era tão tarado por cinema que resolveu filmar os filmes que via. Entrava com a câmera no cinema e filmava tudo. Daí o filme ser chamado de O Vampiro da Cinemateca.

Mas voltando ao Sertão em Festa, é impressionante como esse filme fez justiça à genialidade de Tião Carreiro e Pardinho. Eu gosto muito do filme, adoro essa música regional. Adoro Estrada da Vida, mas o melhor filme caipira que eu vi até hoje é mesmo Sertão em Festa. Osvaldo de Oliveira era um homem formado pela vida. Um autodidata que gostava desse tipo de música. Você vê nitidamente que o filme foi feito com muito prazer, não há o olhar sociológico, distanciado. O que eu acho também um grande mérito de Estrada da Vida. Acho que Nelson Pereira dos Santos é o único cineasta que consegue vestir a camisa dos seus protagonistas. Quando fez o sensacional Amuleto de Ogum, sobre umbanda, ele fez um filme respeitando os seus personagens e o público visado. Quando ele fez um filme sobre a música caipira, ele fez respeitando esse tipo de música, respeitando o público que gosta dela. Existe uma paixão pelo assunto. No Rancho Fundo, Sertão em Festa e Estrada da Vida são exemplos paradigmáticos da possibilidade de se fazer um cinema regional, popular, generoso, abrangente e, por que não, às vezes até inovador.

Olga, neste sentido, não é um filme popular. É o cheque visado do best seller. Só não daria certo se fosse dirigido por um neófito. E o Jaime Monjardim, independentemente das críticas que se fazem ao filme, conhece a gramática do cinema e sabe muito bem conduzir uma narrativa. Só que não é cinema popular. È competente, esperto e comercial. Cinema popular é Mazaroppi, Mojica Marins, Oscarito, Toni Vieira, os filmes de cangaço do Oswaldo de Oliveira filmados em Itú, os filmes do J. B. Tanko, etc. Podiam até não dar dinheiro, mas eram populares.

Candeias?

Candeias nunca foi popular. Seus filmes eram lançados em cinema de arte. O único filme dele que pode ser considerado popular é Meu Nome é Tonho, que ironizava o faroeste italiano. Ele não fazia um cinema popular, fazia um cinema exuberante e criativo sobre gente miserável, mas não popular. Pelo menos não popular como Rancho Fundo, Sertão em Festa, Menino da Porteira

Seus filmes eram populares?

Alguns. A Ilha dos Prazeres Proibidos, por exemplo, era um filme popular porque foi conscientemente construído em cima deste repertório e deu muito público.

E Extremos do Prazer?

Foi um caso muito atipico. O filme entrou num vácuo da censura. Estreou na semana que foram cassados todos os mandatos de segurança que permitiam o filme pornográfico de entrarem nos cinemas comerciais. Como o cine Windsor, em São Paulo, que era o grande lançador de filmes proibidos, não tinha filme para exibir, eles colocaram Extremos do Prazer. Obviamente o filme pegou o público habitual do cinema e, surpresa, caiu no agrado dele. Por conta disso, o filme entrou em cartaz em todas as praças brasileiras onde existiam cinemas semelhantes ao Windsor. Em Porto Alegre, estreou no São João, e no Rio de Janeiro, no cine Vitória, notórios antros do cinema explícito. O curioso é que o filme surpreendia a platéia. Isso não pode ser previsto antecipadamente.

Era um publico mais masculino…

Muito mais masculino. O público da pornochanchada era masculino. Sabe quem era considerado o grosso desse publico? Office boy, trabalhadores do centro da cidade…Nessa época era fácil saber quando o filme faria sucesso. Você via o borderô da segunda e já tinha uma idéia. Quando Snuff, Vítimas do Prazer, por exemplo, teve uma fila enorme no Marabá, lotando uma sessão do meio dia, sabiamos que iria faturar horrores. O que era fascinante é que não havia fórmulas. As estratégias de lançamento iam sendo descobertas aos poucos. O Galante produziu um filme de prisão feminina que fez o maior sucesso [A Prisão]. Em meados dos anos 70, esse tipo de filme, que hoje é conhecido como WIP (Womans in Prison), lotava. Na Europa já era um gênero absorvido pelo mercado. Aqui, o filme do Galante foi uma novidade. Daí, começou a aparecer filme de mulher na cadeia que não acabava mais…era um cinema muito tosco, sem referência, não se falava em Jesus Franco por aqui, ninguém conhecia. Para você ter uma idéia, aqui no Brasil, os distribuidores e exibidores entravam na co-produção dos filmes em cima de um título. A Ilha dos Prazeres Proibidos foi feito assim. O Galante era muito esperto. Nem tinha estreado ainda o Caligula, e ele fez, em uma semana, A Filha do Calígula, que entrou nos cinemas semanas antes. Quase depredaram o cinema, claro! (rs). A chanchada fazia esse expediênte com muita inteligência. Nem Sansão nem Dalila, Matar ou Correr, O Homem do Sputnik… filmes ou fatos notórios da época eram avacalhados. Como disse Paulo Emílio Salles Gomes, eram filmes que exemplificavam a nossa incapacidade de copiar. Como não podíamos copiar, avacalhavamos. O lado naïf tem seu encanto. O melhor da pintura brasileira deve muito à pintura naïf. O melhor exemplo da arte naïf no cinema é José Mojica Marins.

Tem Ritual dos Sádicos no seu livro.

É uma obra-prima, seu filme mais arriscado. Você viu o Despertar da Besta ou o Ritual dos Sádicos? Porque o Despertar é a versão censurada de Ritual. Naquele tempo eles faziam uma crueldade sem tamanho: te obrigavam a cortar no negativo. A cena do estupro do profeta, por exemplo, era muito mais violenta… talvez eles tenham recuperado para o dvd.

Ainda há preconceito contra um tipo de cinema naïf?

Sempre houve muito preconceito. Sinto isso até hoje, quando citam algum filme meu, feito na boca do lixo. Há até uma certa tolerancia com alguns nomes da epoca, mas o tom é sempre complacente. Ouço muito falar: tal cara é bom, mas alguns filmes dele (geralmente os que foram feitos na boca do lixo) são uma merda.

Há uma certa intolerância com filmes mais irregulares. As pessoas tendem a não valorizar seus méritos.

Tem um negócio que o (Júlio) Bressane fala, a respeito do chamado "cinema inocente", com o qual eu concordo totalmente: "qualquer filme, por pior que seja, tem um momento especial, um momento iluminado". O chato é quando não se encontra esse momento.

Mas em muitos filmes fica impossível encontrar esse momento iluminado

O que me incomoda nesses filmes atuais, de produtor, que a crítica elogia, é que não tem nada fora do previsto com antecedencia, não há uma respirada, um vôo livre. Tem momentos em que eu quero gritar: "porra, vira a câmera para a parede! Dá um respiro ao ator!" Você ve aquela coisa bem interpretada, de acordo com o critério televisivo. Não se coloca em choque dois atores, dois estilos de interpretação. É tudo muito normal, mas o mundo não é normal, porque o cinema tem que ser? Tem que haver excessos, uma pulsão entre a interpretação intimista e a histriônica. O que me incomoda é esse cinema "mauricinho", todo certinho, bem fotografado, os atores que parecem "gente como a gente" e pior do que tudo, editados sem tesão. A edição digital trouxe essa perversão. Na edição digital, como você pode fazer centenas de edições diferentes, parece que a montagem é sempre decidida por palpites de terceiros. Esse comentário quem fez foi a Thelma Schoonmaker, a montadora do Scorsese. Cada vez que eles eram "visitados", durante a edição, por um executivo do estúdio, o filme ganhava uma nova versão. Cada paraquedista que chegava colocava uma azeitona na empada; daí o filme ficava com tantas versões que decidir a melhor era um pesadelo. Hoje você vai ver alguns filmes e sai da sala se perguntando: cadê a alma desta merda? Cadê a impressão digital do cidadão que fez o filme?

É triste mesmo quando o diretor não se faz presente, quando não há um ponto de vista… Alguns criticaram justamente o que Garotas do ABC tem de mais belo: a sua mão, sua câmera livre, como na cena em que as operárias saem e sua câmera detém-se nos guardas da fábrica.

Minha preocupação desde o início nesse filme era fazer a câmera se comportar como uma das operárias. Em algumas cenas do baile, fui eu mesmo que operei a câmera na mão. Tinha essa necessidade de fazer com que a câmera estivesse sempre com os personagens. Eu dancei com eles. É o que tem de magnífico no filme do Marcelo Gomes, essa não participação da câmera, que ao mesmo tempo, está lá o tempo todo, mas sem interferir na relação dos personagens. A cena dura o que tem que durar. Ele cortou uma seqüência inteira com vários figurantes porque ela desequilibrava o conjunto. É preciso ter muita coragem para fazer isso. O que interessava a ele era o entendimento de duas pessoas de universos diferentes; a troca que se estabelece entre elas. Em certos filmes parece que não há conceito nenhum. Parece câmera de vídeo, porra. Cola no protagonista e não "enxerga" nada.

Há um descompromisso estético no cinema recente?

Os filmes de hoje parecem estar primordialmente a serviço do roteiro; depois, em não deixar a atenção do espectador se dispersar. Para mim, roteiro é mapa de filmagem, é um guia quatro rodas. O que determina a mise-en-scène é o local e o momento da filmagem. Sei que isso pode parecer complicado para as outras áreas técnicas; por isso busco me cercar sempre de cúmplices. Por sorte, encontrei um fotógrafo que posso considerar como meu intérprete imagético, aquilo que o Storaro falava a respeito do trabalho dele com o Bertolucci. Era o mesmo que eu esperava dos diretores quando eu era fotógrafo; que me enxergassem como seu instrumento. Eu não gostava muito quando o diretor chegava e me perguntava onde ele deveria colocar a câmera. Eu falava: "o ponto de vista é seu". Talvez por isso eu tenha fotografado sempre para os mesmos diretores, Jean Garret principalmente. O meu desafio era "pintar" o filme imaginado por eles. A referência profissional eu ia buscar nos grandes artistas plásticos e nos fotógrafos que eu respeitava. Eu lia o roteiro e dizia: "olha, eu acho que a fotógrafo ideal deste filme seria o Jean Rabier" (de vários filmes de Claude Chabrol). Aí levei o Jean Garret para ver Les Biches (As Corças, de Chabrol, 1968), e ele gritou na hora, dentro do cinema: "é isso aí, é esse azul que eu quero". Esse entendimento é fundamental. O fotógrafo está lá para traduzir, na luz e nas cores, o que está na imaginação de quem escreveu e/ou vai dirigir o filme. Eu li entrevistas com dois fotógrafos famosos, analisando o trabalho deles com o Fritz Lang. Um deles reclamou que Lang lhe impunha as lentes que ele deveria usar; disse que isso era um desrespeito à profissão do fotógrafo. Pombas…o mínimo que se espera de um diretor é que ele saiba exatamente a lente que ele vai usar. Metaforicamente, seria a mesma coisa que o diretor pedir os meus óculos, com 12 graus de miopia, para poder enxergar o enquadramento; ele vai ver o mundo com a minha dioptria, e não a dele. O grande diretor de fotografia Arthur Miller disse que o pior elogio que se pode fazer a qualquer diretor de fotografia é dizer que a melhor coisa de um determinado filme é a fotografia. Isso quer dizer que o fotógrafo prestou um desserviço ao filme. O fotógrafo deve servir ao filme, e não se suplantar a ele. Essa opinião veio de quem fez a foto de Como Era Verde Meu Vale. Para ele foi um prazer enorme trabalhar com Fritz Lang, por ser diretor que conhecia cinema como poucos.

O trabalho deve ser de cumplicidade. Sempre pensei assim, mesmo quando fotógrafo. Me desinteressei em fazer direção de fotografia quando senti que havia acabado o mistério, que estava repetindo os mesmos macetes, truques e expedientes. E depois, comecei a perceber que a fotografia de cinema começou a ficar subserviente demais às chamadas novas tecnologias. Eu vim de uma geração que aprendeu a trabalhar com a falta de condições. A gente tinha que inventar as condições. Por exemplo, eu gostava muito de trabalhar com lã de vidro de geladeira; isso deixava os chefes eletricistas alucinados. Como os difusores de lã de vidro importados eram muito caros, eu saia com o meu chefe eletrecista e íamos às fabricas de geladeira ou oficinas de conserto para arrematar o excedente dos forros de refrigerador. Eu mesmo machuquei muito as unhas e me intoxiquei algumas vezes manipulando a lã de vidro. Mas aprendi que aquela luz tênue e amarelada, que tinha que ser instalada com muito cuidado, podia ser trabalhada artesanalmente, ser desfolhada inteira ou em detalhes que me permitiam corrigir imperfeições na pele, acentuar os olhos, atenuar a cicatriz de uma operação recente nos seios, etc. Em suma, as mulheres ficavam lindíssimas.

Qual foi o último trabalho seu como diretor de fotografia?

Nos meus próprios filmes, foi em Alma Corsária, em que assumi várias funções. Eu não queria mais fazer fotografia, mas como o orçamento era muito apertado, resolvi fazer para poupar dinheiro para pagar uma boa direção de arte. Em Dois Córregos trabalhei com Pedro Farkas, que considero o melhor fotógrafo de exteriores do Brasil. Aí, na pré-produção de Garotas do ABC, convidei o Walter Carvalho para fotografar o filme e ele declinou do convite porque não gostou do roteiro. Fui fazer um curta metragem, à convite da Petrobrás, chamado Equilíbrio e Graça e chamei o Jacob Solitrenick, que havia visto tirando "água de pedra" num curta da Marina Person. Voltei a filmar num lugar chamado "Encontro dos Rios", na cidade de Dois Córregos, e pedi para ele os mesmo matizes de ciano (azul) da pintura de Odilon Redon. E ele conseguiu esse azul, usando filtros. Aí eu quis casar com ele! (risos) Fizemos juntos Garotas do ABC e Bens Confiscados  e desenvolvemos um nivel de relacionamento de mútua confiança, de absoluta cumplicidade. É bom trabalhar sempre com colaboradores que falam o mesmo "dialeto". Eu enxergo a filmagem como uma cidade a ser desvendada; eu preciso me perder nela para conhecê-la.

Há cumplicidade também no trabalho com os atores?

Claro. Eu costumo dizer que existe uma diferença brutal entre palpite e subsídio. Bons atores e técnicos eficientes dão subsídio, não palpite. Com o diretor de arte dos meus filmes, o Luís Rossi, é assim. Fazemos longas avaliações de cada ambiente a ser filmado. Quando chega a hora da rodagem, ele me entrega o cenário pronto conforme o combinado, mas com muito mais elementos do que foi previsto. Eu entro com a câmera e começo a limpar os excessos, a mexer em detalhes, etc. Com os atores é mesma coisa. Tudo é discutido exaustivamente na preparação; quando chega a hora de filmar ele sempre vai trazer alguma coisa a mais do que o previsto. Aí, é só afinar o instrumento. O que eu espero do ator é a disponibilidade dos sentidos. Por isso, toda vez que posso, trabalho com os mesmo atores; que tenham o problema do ego bem resolvido. Eles não dão palpites; eles propõem coisas que vão além do que eu imaginava para eles. É um horror quando o diálogo é fechado. O mesmo acontece com quem faz a música dos meus filmes. Pelo fato de ter tido uma formação musical na adolescência, a música para mim é personagem integrante da narrativa.

Como foi essa formação?

Comecei com um grupo chamado TNT trio, que virava TNT 4, TNT 5, conforme arranjávamos gente pra tocar junto. Mas tive também uma formação clássica, interrompida com a morte do meu pai, um dia antes de eu fazer14 anos. Acho que vale a pena contar esta história. Eu estudei piano clássico desde a infância. Quando estive interno em Rio Claro, eu estudava num conservatório da cidade. Naquele ano (1960) meu pai morreu. Alguns meses depois, no meio de uma aula de exercício, eu me deixei levar pela saudade e comecei a tocar "Peg O´My Heart", uma canção popular que meu pai executava com perfeição. Sem mais nem menos, entra a professora na sala de exercício e bate com uma régua na minha mão. Naquele dia saí do conservatório e nunca mais voltei. Como cresci com um piano de meia calda dentro de casa, fui aprendendo a tocar música popular de forma autodidata. Aos 17 anos formamos o TNT Trio.

Quando escrevo um roteiro, já imagino de antemão o tipo de música que vai integrar a narrativa. Eu filmo com playback; quando possível, com as músicas já pré-gravadas. Em Alma Corsária, compus a trilha inteira com antecedência e programei tudo na minha casa, no meu quarto. Duas semanas antes das filmagens fui para um estúdio para concluir a mixagem e colocar efeitos sonoros. Como foi o último filme que eu fiz sem som direto, trabalhei com os playbacks o tempo inteiro. Isso ajudava toda a equipe de maquinária, toda a movimentação da câmera e, sobretudo, o rendimento dos atores. Eu adoro trabalhar com os atores como se eles estivessem dançando. Com o som direto isso fica mais complicado, mas eu tento sempre achar um jeitinho de incluir o playback. O Nelson Ayres, que fez todos os arranjos de Dois Córregos e Bens Confiscados e foi autor da trilha original de Garotas do ABC, foi o parceiro ideal que eu encontrei para esse forma de trabalhar. Ele sabe que eu filmo com música, que eu gosto de fazer o ator e a equipe técnica descobrirem o ritmo do filme. Em Anjos do Arrabalde, a Beth Faria estranhou o meu método de trabalho. No ensaio eu mandei soltar o playback da música principal e ela perguntou: "Essa musiquinha vai ficar o tempo todo da cena?". Eu disse que ia. Ela fez a cena ressabiada. No dia seguinte ela veio pedir para colocar playback numa cena em que não estava previsto o expediente: "É que o resultado de ontem ficou tão bonito…".

Quando eu não componho pessoalmente a música (como em Alma Corsária ou o curta Equilíbrio e Graça) eu imagino toda a trilha a partir de composições e gravações já pré-existentes. Aí mostro para o compositor e o arranjador o estilo e a atmosfera que elas sugerem e eles trabalham em cima.

Os músicos concordam com esse método?

Ora, foi esse o desafio que eu busquei como diretor de fotografia ou como roteirista de terceiros. O desafio mais prazeroso para um colaborador é descobrir exatamente aquilo que o diretor imaginou. Se cada um fizer o que quer não tem graça. Tem uma história interessante que me aconteceu quando estava trabalhando como diretor de fotografia. Percebi no primeiro dia, pela disciplina de filmagem, que não ia rolar afinidade com o diretor se eu continuasse a trabalhar conforme o meu método. Eu tinha que iluminar um escritório, com intensa luz externa invadindo o local pelas janelas. Fiz inicialmente uma iluminação toda recortada… Aí o diretor me disse para passarmos pro outro lado, e filmarmos o contracampo. Desmontei toda a iluminação e inverti refletores e toda a parafernália. Três horas depois, o diretor manda voltarmos para o eixo antigo. Aí eu falei: "Espera aí, nós vamos ficar nesse ping-pong todos os dias?". Ele respondeu: "Eu só sei filmar em ordem cronológica, por causa dos atores. Para mim, interessa a continuidade da interpretação." Embora perplexo, entendi que eu deveria me adaptar ao método dele e então pedi: "Então me faça um favor, joga fora tudo que foi filmado até agora e vamos refazer toda a seqüência conforme o seu método". Pedi para o meu eletricista-chefe providenciar um paredão de isopores e optei definitivamente por uma iluminaçao indireta, rebatida. A câmera mudava de lado e o paredão de isopor ia atrás. E olha, até que a luz do filme ficou bem bacana!

Uma vez, num debate no Espaço Unibanco, durante o lançamento de Dois Córregos, Nelson Ayres, Arrigo Barnabé e eu discutimos métodos de trabalho na trilha sonora. Quando eu e o Nelson falamos da forma como trabalhávamos, o Arrigo disse com total sinceridade: "Eu não gosto quando o diretor interfere na música!". Foi o Nelson quem defendeu a idéia de que o prazer da trilha de cinema é justamente buscar traduzir a visão de uma outra pessoa. E não adianta reclamar depois do filme acabado. A meu ver, se o colaborador não realizou aquilo que se prestou a fazer, a culpa é do diretor. Ele que não soube exigir ou passar o que queria, ou não soube detectar a incompatibilidade ou incompetência do colaborador. Isso não quer dizer que eu espero que o colaborador esteja ao meu lado só para obedecer ou bater ponto. Ao contrário, eu exijo que ele sinta prazer em trabalhar comigo, que encare a parceria como uma grande aventura, como uma experiência inédita e enriquecedora. Sinceramente, eu não entendo como um diretor pode contratar alguém que esteja em diapasão diferente para fazer a música do filme que ele levou anos para conceber. E, confesso, se há coisas das quais eu tenha um ciúme quase doentio são dos meus enquadramentos, dos movimentos de câmera, da minha visão de mundo e da musicalidade da minha linguagem fílmica.

E a reação ao Bens Confiscados?

Eu vi as reações mais engraçadas que você pode imaginar. No fest de recife foi um delírio. Um centro de convenções imenso, uma loucura, mais duas mil e quinhentas pessoas reagindo a cada momento.

Quando começa o Lucineide Falsa Loira?

A pré-produção deve começar em fevereiro ou março. O protagonista masculino tem que ser um cantor. Ele é o ídolo musical da Lucineide. Como é co-produção com Portugal, teremos um ator português, e traremos um técnico de lá.

O que te motivou a selecionar filmes para fazer os dois livros?

A vontade de escrever sobre alguns filmes que foram importantes na construção do meu repertório profissional, no meu modo de enxergar o mundo ou que mexeram no meu comportamento e/ou na minha vida pessoal. Eu não queria repetir o chavão dos "melhores filmes da minha vida". Me interessei mais em falar de um filme que me fez romper um "namoro sério" de quatro anos, que incluir, por exemplo, filmes de Sergei Eisenstein, Orson Welles ou Tomu Uchida, que são essenciais na formação de qualquer espectador.

Como conciliar o filme com o livro mais o blog?

O filme é mais demorado porque temos que captar recursos, o que deve somar uns seis sete meses, ou até mais de um ano. Tudo muito cansativo. Estou com um outro projeto, uma surpresa, que se eu tivesse dinheiro na mão, começava a fazer já, porque envolve muita pesquisa, mas vai ser apaixonante, e uma surpresa para muita gente, onde o cunho autoral ficará em segundo plano.

Não pode revelar nem um pouquinho?

Não posso revelar por enquanto, infelizmente.

Qual a possibilidade de termos seus filmes em dvd? Hoje só temos Dois Córregos e Garotas do ABC. [NE: anos depois seria lançado Lilian M]

Se vendemos o direito de distribuição para alguém não ganharemos nada. O ideal seria criar um selo para vender os filmes pela internet, lançariamos como quiséssemos. No exterior é bem comum, as distribuidoras pequenas mal têm escritório, eles lançam para vender pela internet. Eu sou dono de dois filmes. E tenho sócios em vários outros. O Galante é dono de alguns. Mas o interessante seria fazer um pacote, o cara quer Dois Córregos, leva também o Amor Palavra Prostituta, ou o Lilian M

E a experiência de ter um blog?

Eu tenho plena consciência de que, na internet, uma das coisas mais estimulantes é esse contato direto. Um contato honesto, franco, se o cara não gosta do teu filme ele te diz na cara. Por isso eu comprei um domínio.

É um espaço de divulgação, não?

Acho que é mais um espaço de reflexão. No começo eu via mais como divulgação, mas agora percebo que o espaço é ótimo para reflexão. Alguns provedores aumentaram os espaços, porque perceberam esse potencial. Um blogue tem uma função jornalística incrível. Tem o lado ruim, com sites e blogues reacionários, mas até isso pode ser interessante, como manancial de pesquisa. Faço 4 ou 5 projetos de filmes ao mesmo tempo, um deles é em cima de pessoas fisicamente deslumbrantes, mas ideologicamente abomináveis, algo que dialoga com o momento brasileiro. O título é Formosa e Reacionária. A protagonista se chama Adolpha e, de certa maneira, ela sintetiza o pensamento neo-liberal dos dias de hoje. É uma garota linda que tem Thomas Jefferson como ídolo e Olavo de Carvalho como ícone. Para construir o pensamento desta garota eu fiz um autêntico trabalho de prospecção em sites, blogues e nas comunidades reacionárias do Orkut. Aliás, o orkut é o maior manancial de manifestações de intolerância que eu já vi. É assustador descobrir uma geração tão reacionária nascida à sombra do neo liberalismo. Estava tomando capuccino outro dia, em um café desses mais caros, na Praça Buenos Aires, tinha quatro jovens, dois casais bem vestidos ao meu lado. Eu e minha mulher ficamos estarrecidos com o papo dos quatro. Pareciam uma versão ainda mais fascista dos trogloditas de Garotas do ABC. Se eu colocar em Formosa e Reacionária o que nós ouvimos ali, vão dizer que eu exagerei, que ninguém pensa assim no país. Mas eu ouvi isso de gente informada, que frequenta colégios caros, que se veste com elegância, que come bem, faz ginástica e deve morar ao lado da minha casa, na Avenida Angélica.

Que tipo de coisas eles falavam?

Coisas ultra preconceituosas contra nordestinos, negros, pobres. Falavam um português corretíssimo, coisas completamente reacionárias, nojentas. É a nova direita brasileira. E eu tenho a impressão de que o cinema não está enxergando isso. O cinema precisa retratar ou buscar entender a sua época. Essa capacidade do cinema parece estar sendo subestimada. Todo filme deveria ser, espontaneamente, um espelho do seu tempo.

Como é a cinefilia hoje, com a decadência do cineclubismo, a TV paga e a popularização dos programas de download na internet?

Eu sinto que a cinefilia, no mundo inteiro, tomou um fôlego deflagrador com o advento da Web. Você percebe isso com nitidez justamente na quantidade de títulos chamados "difíceis" disponíveis nos torrents da vida. A internet, além de estimular reflexão, debate e prospecção sobre cinema e filmes em geral, tornou-se o local ideal para a aquisição de filmes raros e de gênero específico. Eu percebo também que, graças a este acesso global ao DVD, a projeção digital (tal como está sendo veiculada hoje nos cinemas comerciais) já nasce com os dias contados. Em pouco tempo, ninguém vai querer ir ao cinema para ver filmes numa "televisão gigante". As majors serão obrigadas a chegar num acordo e adotar um novo suporte à altura da película.

A critica te incomoda?

O que me incomoda é a crítica pejorativa. Se o cara não gosta, está no direito dele. Ninguém é obrigado a gostar de tudo. Mas a crítica imaginada como exercício de poder é abominável. Me deixa possesso ler qualquer crítica pejorativa quando o filme é mostrado em pré-estréia ou em festivais. Para se escrever bem sobre um filme é preciso revê-lo. Tem vários filmes que eu detestei na primeira vez que vi e depois, numa revisão, detectei qualidades que passaram desapercebidas. Eu jamais escreveria uma crítica sobre Cidade Baixa para ser publicada em jornal. Primeiro porque não sou crítico profissional. Quando me chamam na Folha, eu só escrevo sobre filmes brasileiros que gosto. Afinal, eu faço filmes também. Posso não ter gostado hoje, porque a projeção foi em digital, porque estava com uma crise de úlcera, sei lá. Daqui a quatro meses vou rever e acho do caralho… O olhar crítico é salutar quando não é despertado por preconceitos. A boa crítica me ajuda a entender porque gostei ou não de determinado filme. Às vezes fico com raiva de determinado crítico porque sua opinião pejorativa me fez desistir de ver um determinado filme. Se dependesse dos críticos da época, eu jamais teria descoberto Cronenberg, Dario Argento, George Romero, etc. Lembro que cinefilia, nos anos 60, era sinônimo de prospecção e garimpagem. E isso, eu acho, foi uma coisa que a Internet recuperou, no mundo inteiro. Em resumo, um crítico nunca será o dono da verdade absoluta; afinal, os críticos morrem ou mudam de profissão, os filmes ficam.

QUEDA DE BRAÇO:

- uma canção para escutar durante o banho: "Menina Moça", de Tito Madi, e "Céu e Mar", de Johnny Alf

- uma canção para escutar enquanto descansa no set de filmagem: "Ebb Tide" (tenho mais de 140 gravações dela) ou "Romantic Partners", de Nilo Sérgio (o genial maestro-produtor-compositor que inventou a orquestra Românticos de Cuba)

- um disco para a ilha deserta: "Polynesia", com o conjunto de Arthur Lyman

- uma discussão cansativa: "Cinema e Mercado"

- uma decepção cinematográfica: "Lado a Lado com o Inimigo" (Submerge), de Anthony Hickox

- uma surpresa cinematográfica: "A Última Missão" e "Consequence", ambos de Anthony Hickox

- um grande filme injustiçado: "O Viajante", de Paulo Cesar Saraceni

- um filme que te deixou revoltado: "Violência Gratúita" (Funny Games), de Michael Hanneke

- Scorsese ou Coppola? – Scorcese e Coppola

- Godard ou Antonioni? – Godard e Antonini

Comentário – Se você tivesse me perguntado Godard ou Fellini ou Bergman, eu não teria hesitado: GODARD!

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Entrevista concedida a Sérgio Alpendre, em janeiro de 2006.

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