Ano VII

Pialat: a crueldade e o real recriado no desencanto

segunda-feira jul 2, 2012

Pialat: a crueldade e o real recriado no desencanto

O cinema francês do final dos anos 60 e começo da década de 70 herdou um peso gigante: a Nouvelle Vague e seus desdobramentos. Cineastas que começaram seu trabalho sob o impacto do cinema de Godard, Rivette e companhia, sob a valorização da cinefilía e sob um incremento sensível no papel da visão crítica dos filmes, tiveram que conciliar essa situação com a inevitável ebulição sócio cultural do Maio 68 e suas consequências. Esse cenário permitiu o surgimento de autores que lidavam de forma intensa com o entorno (a realidade) em que viviam, com os fatos, as incertezas, as dores e esperanças que pautavam a vida na Europa revolucionária e culturalmente fervilhante.

Essa geração de novos autores é composta por cineastas de grande poder de encenação, que impregnavam seus filmes com sentimentos existenciais da época e com a realidade que dominava o espaço público; elementos que eles traduziam em imagens e discurso cinematográfico. Essa realidade em que estavam inseridos era matéria sensível de seus filmes. Esse real era sempre carregado de reflexões nada animadoras sobres os rumos da sociedade. O desencanto e o fracasso dos ideais (que se tornavam cada dia mais claros) eram forças incontroláveis no mundo que esses diretores recriavam; os dramas que encenavam teciam elaborados comentários sobre a desilusão.

Dentre esses cineastas, estão três nomes fundamentais do cinema mundial: Maurice Pialat, Philippe Garrel e Jean Eustache. Eustache teve curta e intensa produção; Garrel é ativo até hoje; e Pialat – que morreu após deixar dez longas, vários curtas e uma minissérie na TV – é um dos raríssimos casos no cinema em que um autor pode ter toda sua obra considerada como uma obra-prima. Sem exageros, seus filmes são irretocáveis, e crescem ainda mais a cada revisão.

A Infância NuaEnquanto Eustache era o “documentarista” e Garrel o “poeta” do desencanto, Pialat é o mais cruel cronista da desilusão. Seu cinema é todo construído no poder da mise en scéne, em um complexo e sofisticado processo de abordagem frontal ao real; a diegese é conduzida sempre pela crueldade dos dramas encenados. Pialat leva seu espectador ao extremo da dor de viver de seus personagens. Sua crueldade e seu ácido sarcasmo saltam da tela e atingem o espectador no estômago. Ele não poupa seus personagens, condena todos e vê a corrupção existencial e a falta de perspectiva e iniciativa como as forças motoras de uma sociedade desencantada que perdeu as esperanças após a não realização do que 68 prometia. Essa força visceral de sua mise en scéne permite que Pialat filme o mal estar presente no ar pesado que seus tipos respiram em cada sequência.

Ele constrói essa complexa estrutura dramática em seus longas por meio do uso de todos os elementos de encenação que dispunha. Sua câmera é inserida e se movimenta dentro da estrutura de cada cena. Suas imagens são discretas, sempre na busca por uma apropriação do real em tudo que põe na tela. Seus enquadramentos são os mais eficientes possíveis. Mas esse falso despojamento documental inverte o jogo pela recepção totalmente sensorial que provoca no público. A luz em seus filmes é trabalhada nos princípios naturalistas, mas as variações entre claridade e escuridão, luzes artificiais, penumbras e sombras amplia a densidade da dramaturgia e emoldura com tons sempre melancólicos o que está em quadro e também sugerido pelo fora de cena. Novamente, esse trabalho formal em Pialat visa sempre à relação pictórica entre um acentuado tom realista e crueldade com que o autor expurga o desencanto de viver.

As elipses, os cortes e as passagens de cena, sempre virulentas e acentuadas em seus filmes aumentam ainda mais a sensação de desconforto com os destinos e dores dos personagens. Outro recurso comum na encenação de Pialat é o tensionamento na duração das cenas. Planos se estendem, diálogos se alongam intercalados por silêncios desconfortáveis, explosões emocionais de personagens são levadas ao extremo bem como a brutalidade e o sarcasmo dos personagens transbordam no cerne da construção dramática. Uma rigorosa direção de atores em todas as cenas que filma, potencializa a intensidade da encenação. Pialat tira o máximo de seus atores ao mesmo tempo em que lhes proporciona papeis definidores em suas carreiras.

Seguindo uma abordagem da obra de Pialat por um eixo de “apropriação do real-encenação-crueldade-desilusão” temos em elementos de seus filmes a representação perfeita desse processo criativo do cineasta. Em seu segundo longa, Nós Não Envelheceremos Juntos, de 1972, o cineasta aborda a história de um casal ao longo de alguns anos de relacionamento. Todo o drama construído no filme, montado na base de acentuadas elipses e uma câmera inserida no centro da diegese, é composto a partir de uma máxima recriação da realidade. A crueldade das situações vividas pelos protagonistas, a dor que infligem um no outro, a impossibilidade de realização e confirmação do amor e a falta de perspectiva em seus destinos são retratadas por Pialat de maneira tão intensa, que a potência da mise-en-scéne acaba criando um conflito com o realismo das imagens e em vez de tornar o filme uma obra meramente naturalista, acaba paradoxalmente compondo uma dialética entre real e discurso encenado que impossibilita a obra de atingir o simples naturalismo, indo muito além. É uma força tão intensa no que mais objetivamente podemos definir como talento e capacidade de direção de cinema, que faz de Nós Não Envelheceremos Juntos uma obra definitiva (e complexa em múltiplas possibilidades de percepção) sobre os relacionamentos desencantados no início daqueles melancólicos anos 70, e que se refletem até os dias de hoje.

A intensidade da encenação, a capacidade de ultrapassar os limites do realismo por meio de discursos ácidos e sofisticados estão presentes em todos os filme que Maurice Pialat realizou. Em La Gueule Ouverte, de 1974, filme seguinte a Nós Não Envelheceremos Juntos, Pialat atinge o que pode ser considerado o ápice de sua visão cruel sobre a pequenez moral do homem e a dor de viver. A sequência da morte da mãe, filmada de forma fria e cirúrgica e estendida ao máximo em sua duração, uma cena sem falas, só com ruídos diegéticos de dor (e uma respiração ofegante onipresente) em meio à presença esmagadora do silêncio é um dos momentos em que Pialat expõe com mais clareza sua visão de mundo. Essa cena, e o magnífico penúltimo plano do filme, um longo travelling de ré com a câmera no carro, que se afasta da casa e depois da cidade e entra na estrada, são momentos fundamentais para se captar e entender a obra e as propostas artístico-estáticas de Pialat.

Essa crueldade se mantém em toda sua obra seguinte, mas Pialat a encena com dramas diversos, sempre na dialética entre real recriado e encenação visceral. Sua visão do desencanto do mundo e da falência dos ideais se vira para o retrato da adolescência francesa no final dos anos 70 em Passe Ton Bac d'Abord (1978). A própria constituição dos personagens desse filme acentua a visão de Pialat sobre uma juventude apática, vazia e sem aspirações. Em 10 anos, os jovens foram de revolucionários e representantes das esperanças e da ideologia de Maio de 68 a um grupo de moleques individualistas, desencantados e rasos. Pialat não poupa nenhum personagem em Passe Ton Bac d'Abord. Todos os tipos que vemos são retratos de seres desprezíveis. Mais ácido impossível.

Sempre coerente ao alinhar sua visão artística ao discurso impresso na forma e no conteúdo de seus filmes, Pialat segue na construção de uma obra coesa repassando seus principais temas. Desde a visão materialista do sexo e da falta de perspectiva afetiva e profissional dos personagens de Loulou, de 1980, passando pela crueldade e o rancor da violência interna de uma família e o choque de gerações em Aos Nossos Amores (1983) e a degradação física da cidade grande e seus habitantes/sobreviventes em Police (1985) até a desilusão da fé no falso metafísico Sob o Sol de Satã (1987), Pialat nunca abandona o eixo que conduz sua obra: “apropriação do real-encenação-crueldade-desilusão”.

O cinema de Pialat é único na força em que (e pela qual) se constitui como arte. O fazer cinema do diretor é levar uma percepção de mundo ao extremo de suas possibilidades por meio da forma. O rigor é absurdo, mas o resultado atingido nunca irá abandonar os corações e mentes daqueles que assistem aos seus filmes. O cinema de Pialat é um monumento.

Fernando Oriente

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br