Ano VII

Le Garçu (1995)

segunda-feira jul 2, 2012

 

Le Garçu

1995

Apresentar fragmentos da vida do casal principal fora de ordem cronológica dá ao filme uma lógica mais de sentimentos e estados do que a de uma trama. Isso guia o espectador a não esperar pelo que “acontece a seguir”, mas sim a contemplar cada instante em si e a percebê-lo como parte não de um todo fechado, mas de um todo sem sentido, encantador, desafiador e natural. É o conjunto formado pelos sentimentos humanos.

Le Garçu acompanha Gerard (Depardieu) em suas relações mais próximas: ex-mulher, amante, filho, melhor amigo…  Assim como na maioria dos seus filmes, Pialat trabalha com as fissuras existentes nestas relações: aquilo que não se completa, aquilo que frustra a um enquanto realiza o outro, os conflitos de poder, dominação e submissão. Porém, nada de drama tal qual a estamos habituados, pois aqui pouco se vê a histeria e a insanidade mais presentes, por exemplo, em Aos Nossos Amores. Também nada da insinuação de um plano sobrenatural paralelo à realidade objetiva mais imediata (Sob o Sol de Satã). Ainda, nada de belas paisagens e cenografia pulsante (Van Gogh). Logo, a ausência ou o amortecimento de alguns dos elementos já explorados de forma mais evidente no passado de sua carreira dão a Le Garçu a aparência de um filme-póstumo menor do que seria esperado do autor de Van Gogh.

Porém, tal qual a encenação de Pialat, Le Garçu possui uma alta carga de violência e selvageria escondida por sob as superfícies banais. Em alguns momentos, algumas situações dão a impressão de estarmos diante de um filme de terror daqueles mais assustadores, os do tipo psicológico. O mote é simples: Gerard é um homem muito forte, mas cuja força se expressa de forma “errática” em suas relações sociais. Misoginia para com a mulher submissa, devassidão com a amante, narcisismo dominador com o filho pequeno, inveja do empregado negro que se dá bem com o filho, excesso de bebida em algumas noites. Nada disso é dramatizado, o que elimina qualquer tipo de moralismo ou julgamentos sobre o personagem. A câmera do cineasta constata e registra de uma maneira próxima à documental (mas sem os tremeliques) pequenas cenas situadas em pequenos lugares (ruas comuns, apartamentos de classe média normais) e vividas por pequenos homens.

Homens cheios de falha por natureza, e o filme mostra de forma fria como um casamento causa dor e como a herança dele (o filho) para o mundo absorve essa energia errática (ódio, ciúme, narcisismo, desejo de dominação do outro) oriunda dos adultos. Estes, imperfeitos, criam o filho de forma imperfeita. A vida é imperfeita, e os personagens, principalmente Gerard, parecem estar constantemente esmagados e sob pressão, mesmo que nada de extraordinário esteja acontecendo. Viver é difícil, mas viver é necessário. O plano final, o último da carreira de Pialat, mostra Sophie (a ex- esposa) deixando cair uma lágrima discreta sem que Gerard perceba.

Isso é ao mesmo tempo um lamento pelo que se viu durante o filme e um indício de esperança rumo ao futuro. Consagra-se aí a lógica que guiou toda a obra de Maurice Pialat: nada de reduzir a vida a uma ordem ilusória plena de sentido e daquele positivismo que sublima, mas, sim, simplesmente colocá-la em movimento.

Fernando Watanabe

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