Ano VII

Dia 1: o dia de Sangue do Meu Sangue

domingo jun 3, 2012

Dia 1: o dia de Sangue do Meu Sangue

Os dois filmes vistos no meu primeiro dia no Olhar de Cinema, em Curitiba, mostram “a vida como ela é”. O primeiro ofusca o segundo com sua mise-en-scène ousada, e o segundo é um típico drama realista de boas intenções e realização manca, ainda que sua sinceridade e entrega saltem aos olhos.

Sangue do Meu Sangue, do realizador português João Canijo (de Mal Nascida e Noite Escura), o primeiro dos filmes de ontem, é desnorteador, justamente porque se apresenta ao risco como nenhuma outra obra recente que eu tenha visto. Nos momentos em que funciona, que ocorrem, felizmente, em maior parte, é mesmo impressionante.

A câmera de Canijo deixa explícitos os recortes de espaço, alternando a relação de nosso olhar com eles. Dois diálogos que acontecem simultaneamente em cômodos distintos de uma mesma casa são apresentados geralmente ao mesmo tempo, sem qualquer hierarquia, numa polifonia de vozes que os aparelhos de rádio e TV, sempre ligados, amplificam no limite do absurdo. É um registro realista do cotidiano, realista demais para não causar estranheza. Na primeira metade dos 140 minutos de Sangue Do Meu Sangue, o maneirismo impera, com esses recortes se reproduzindo por espelhos, janelas, vãos e movimentações dos atores e da câmera. O tratamento do som é exemplar, uma vez que não somos levados a escolher um dos diálogos que aparecem, e em vários momentos ficamos impossibilitados de entender tudo que eles falam, ou mesmo acompanhar um dos diálogos com atenção. Somos jogados no meio de uma família pobre de Lisboa. Mãe, padastro, filha, irmão e tia lutam para elevar a renda mensal, ou para que suas vidas façam algum sentido. A tia é um mistério.

A atriz Anabela Moreira, que vive a tia Ivete, é um mistério. Ela já havia sido a protagonista do excelente Mal Nascida, e seu rosto em alguns momentos revela uma beleza especial, em outros, o cansaço de uma vida de martírios e tristezas. Talvez seja sua qualidade, ou o olhar especial de Canijo para encaixá-la no papel ideal para o que seu tipo de beleza escondida possibilita. Em Sangue do Meu Sangue ela será a maior atingida pela série de infortúnios que se abate na família, seja por causa do sobrinho marginal, seja por sua posição de coadjuvante de tia solteira.

Portugal nos anos 2000. Tráfico, criminalidade e poluição sonora parecem dominar a cena de periferia, e Canijo não faz a menor questão de facilitar nossa compreensão total dos meandros. Ainda assim, apesar da dificuldade de compreensão dos diálogos, tudo se esclarece ao espectador, o que comprova a habilidade narrativa do diretor. Toda essa intrincada engenhosidade de imagem e som da primeira parte representa um grande risco, mas o filme sobrevive só com alguns arranhões. Isto porque na segunda parte o filme se encaminha para uma situação à Ulrich Seidl, envolvendo o irmão e a tia, que é encerrada de forma catártica e um tanto pobre, alargando o limite entre o que podemos suportar e o que se torna desnecessariamente abjeto. Mas é só um pequeno deslize dentro de uma construção implacável e cruel. Não é o melhor de Canijo, mas pode ser o mais radical.

Visto logo depois, o paraibano Tudo Que Deus Criou decepciona bastante, principalmente porque começa com um rigor surpreendente, e pede ousadia de duas atrizes globais, Guta Stresser e Letícia Spiller. E o filme tem seus achados, todos escondidos sob um amadorismo perigoso e uma pretensão artística que quase anula a simplicidade que emana de alguns poucos momentos. Terminamos de ver este filme com o de Canijo ainda na cabeça, fortalecido pela comparação.

Sérgio Alpendre

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