Ano VII

Xingu

quarta-feira mai 9, 2012

Xingu (2011), de Cao Hamburger.

A passagem de Xingu pelo circuito comercial vai ficar marcada pela discussão em torno da bilheteria do filme e o fato de seus produtores  terem se frustrado com o fato dele não ter atingido o patamar de público que eles imaginavam, alegando que isso ocorreu porque, em tese, o brasileiro não quer ver sua história no cinema e, sobretudo, índios.

Se por um lado a discussão é válida e merece ser aprofundada; por outro, suscitá-la só encobre as qualidades do filme, e marca nele uma imagem de filme mal sucedido que ele não deveria carregar. Visto que um filme não deveria ser medido, apenas, pelo valor que custa, pelo potencial de dinheiro que pode fazer ou pelo número de cópias com o qual é disponibilizado ao público; deve ser medido, sim, e principalmente pelo que resulta na tela, ainda que esse resultado demore a ser descoberto, ou mesmo nunca o seja com inteira justiça.

Nesse sentido, Xingu se não é enorme, está muito, mas muito longe de ser pequeno, e, por mais estranho que pareça dizer isso, é, de certa forma, um filme necessário pelo tema que traz e pela forma como o aborda – e não é difícil prever o quão usado e revisitado será para discutir a relação do contato entre índio e branco no Brasil, numa dobradinha com outros filmes, entre os quais o seu contemporâneo no circuito Paralelo 10, documentário de Silvio Da-Rin que trata de tema bastante próximo e mais atual.

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A imagem mais forte de Xingu é o plano final da narrativa, a que antecede as cenas documentais do epílogo. Nela, os irmãos Villas Boas conseguem finalmente contato com um índio da tribo Kreen, prestes a ser desalojada para a instalação da transamazônica. A força da imagem daquele índio, o choque da diferença, o estranhamento, é tamanho que explica todo o filme e todo o trabalho dos sertanistas. É um plano rápido, mas tão surpreendente e impactante que sintetiza e define a problemática de Xingu.

Mas a força desta imagem não seria tão grande se antes Cao Hamburger não tivesse construído com muita correção não só a trajetória histórica dos personagens e sua causa, como a estrutura psicológica dos personagens e o amadurecimento do ponto de vista deles em relação ao contato com tribos isoladas. Bem como não lidasse com a paisagem com naturalidade, incorporando-a, sem um deslumbramento maior do que o dos personagens. Toda essa amarração anterior do filme, todas essas relações possibilitam esse grande e antológico final, pois está contida nele, faz parte dele. No plano daquele índio, há todo o filme e todo um filme.

Esse sentido, de acumulação, é uma de suas grandes virtudes. E uma acumulação sem maneirismos ou pressa, sem truques do roteiro. Ainda que incomode, bastante num primeiro momento, depois menos, a narração do personagem Cláudio Villas Boas, vivido por João Miguel, por soar didática demais, ela ajuda a construir a experiência dos personagens e acabam servindo a trama que se permite lacunar ao explorar bem e com sutileza certas passagens determinantes na história dos irmãos, ou seja, a relação sexual deles, ou de dois deles, com índias; o conflito que isso gera entre eles e as dificuldades de atar o sentimento de união familiar à causa e à forma particular com que cada um pensava a forma de negociação e concessões aos pedidos do governo; bem como a crise de Cláudio com a suposta paternidade e todo o desdobramento que isso causa, ao ponto do mesmo usar até da violência para arrastar os índios para a área protegida do Xingu. Nestes momentos, o filme é bastante feliz. E ainda mais quando conta com João Miguel em cena, ainda que o restante do elenco não destoe.

O caráter lacunar, o fato de Xingu evitar uma construção toda amarradinha na qual tudo precisa ser explicado numa lógica fechada de roteiro é um achado. Exemplo disso é o fato do filme não se deter na explicar de todo o desdobramento da entrada dos irmãos na expedição e logo os colocar em cena na mata e no rio, encontrando os índios. Não há também uma sustentação dramática que exagere momentos de tensão ou induza a emoções forçadas, as vidas seguem seu curso, seus objetivos, mas no fluxo da biografia, da própria experiência e, não, num fluxo reorganizado pelo cinema para causar impacto, o que revela um respeito enorme à biografia dos irmãos e ao próprio índio que não se tornam joguetes de uma lógica de ação extemporânea ao fato vivido, ou supostamente vivido. Respeito que – frise-se – está também longe de ser uma reverência cega.

Xingu é um belo filme, independente do número de bilhetes que venda.

Cesar Zamberlan

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