Ano VII

Americano

quinta-feira abr 26, 2012

Americano (2011), de Mathieu Demy

Filho de Jacques Demy e Agnès Varda, Mathieu Demy estreia como diretor em Americano, um filme pequeno e adorável. Não é uma obra inovadora e nem entrará para a história como muitos dos longas de seus pais, mas é o trabalho de um cineasta hábil e sensível, que sabe o que quer dizer e, principalmente, como dizê-lo. É um filme muito pessoal de Mathieu Demy e obra de um diretor que, a despeito de ser “filho de alguém”, tem uma personalidade própria. O que não impede que o filme, no entanto, seja impregnado de Jacques Demy e Agnès Varda até a medula.

Mas em nenhum momento fica a impressão que o diretor quis imitar o estilo dos pais ou sequer homenageá-los; ao contrário: se Americano traz vários traços da obra do casal Demy-Varda isso parece antes ação da força do DNA herdado pelo cineasta. Mathieu Demy narra sua história em um estilo próprio, talvez mais conscientemente influenciado pelo cinema francês contemporâneo que pelo praticado por seus pais.

De uma maneira bem humorada, porém, Mathieu decidiu brincar com sua própria herança e inseriu em seu longa duas citações bastante óbvias ao cinema de seus genitores. Primeiro, a existência de uma personagem sedutora chamada Lola, que nada mais é que uma maneira lúdica de aludir à protagonista de mesmo nome vivida por Anouk Aimée em Lola, a Flor Proibida, primeiro longa de Jacques Demy. A outra citação é o uso de imagens espalhadas pelo filme extraídas de Documenteur, longa que Agnès Varda dirigiu no começo dos anos 1980, com o filho Mathieu no papel de um garoto chamado Martin. Em Americano, essas imagens surgem como se fossem lembranças do personagem principal (também chamado Martin e igualmente vivido por Mathieu Demy) de sua infância na Califórnia.

Citar o pai e a mãe de maneira tão ostensiva é uma atitude no mínimo corajosa: é como se o diretor estufasse o peito e gritasse: “Não tenho medo de comparações”. Há também nesse ato um quê de zombaria, como se de alguma forma parodiasse a obra de seus pais (Mathieu Demy tem mesmo o senso de humor aguçado: em um gesto de desbragada autoironia, escalou para papeis importantes em seu filme as excelentes Chiara Mastroianni e Gerladine Chaplin, também elas filhas de ícones do cinema; é uma citação jocosa a si mesmo).

Americano possui grande influência de Agnès Varda em sua estrutura, mesmo que involuntariamente. Como a mãe, Mathieu Demy tem apreço pela autorrecriação ficcional: parte de fatos próximos à sua vida para reinventá-los na ficção. Tem também como ela um gosto pronunciado pela confusão entre real e fictício – a presença do Martin garoto é exemplar nesse sentido (é ao mesmo tempo a versão criança do personagem que agora vemos adulto e do ator que interpreta esse mesmo personagem).

Mas em essência, Americano tem ainda mais parentesco com o estilo de Jacques Demy. Embora busque quase sempre um visual mais realista, a câmera de Mathieu Demy tem uma sensibilidade por vezes extremamente fantasista. Isso se faz notar mais facilmente nas imagens de Salma Hayek, idealizada, com seu rosto e corpo magníficos enfocados com delicadeza e respeito, mesmo em cenas de sensualidade agressiva como um número de dança em uma boate. Ela é uma personagem inatingível, uma diva à moda antiga. Como o pai, Mathieu Demy demonstra um forte gosto pela ilusão, pela possibilidade de a vida ter algo de hollywoodiano. Não é por acaso, aliás, que Los Angeles é o pano de fundo de grande parte da ação: na cidade dos sonhos, Martin recria seu passado e a sua difícil relação com sua mãe, que se evaporou de sua memória. Sob o signo da fantasia, Martin reinventa sua infância, mas não só: ele também refaz o seu presente, também idealizando-o, com fatos absurdos se sucedendo, como em um sonho (eclodindo em um desfecho tipicamente hollywoodiano).

Também há algo do olhar fascinado de Jacques Demy pela paisagem de Los Angeles (como não associar as cenas do carro conversível pela paisagem de L.A. de Model Shop com as do veículo de Americano pelas highways da mesma cidade?). Como o pai, Mathieu tem um olhar impressionado sobre essa metrópole, de quem a vê com medo e admiração; é claramente a visão de um estrangeiro (tanto é assim que, em seu carro, o personagem Martin é mostrado ao som de “L.A. Woman”, do The Doors, que é um clichê equivalente ao que de cineastas não-brasileiros que inserem “Garota de Ipanema” em seus filmes ao mostrar imagens do bairro da zona sul carioca).

Há ainda outra marca “genética” notável: Mathieu Demy dá em seu filme prosseguimento a uma espécie de tradição familiar de reaproveitar personagens criados em filmes anteriores e inseri-los no filme atual. No caso, ele ressuscita um personagem criado pela mãe, Martin, de Documenteur, que agora surge adulto; lembremos que Varda também voltou a falar dos mesmos personagens de Les Glaneurs et la Glaneuse dois anos mais tarde, em Deux Ans Après; e que Jacques Demy era ainda mais afeito a esse procedimento – além de fazer reviver a própria Lola em Model Shop, também deu vida novamente a Roland Cassard (também de Lola, a Flor Proibida) em Os Guarda-Chuvas do Amor.

Tantas referências ao universo cinematográfico paterno e materno surgem de maneira natural, nunca forçada, em Americano, que é um filme sobre um homem confrontado com a sua herança. Isso se aplica tanto ao personagem Martin, que tem que lidar com as lembranças e o apartamento deixado pela mãe, quanto a Mathieu e a ligação com a arte que herdou dos pais. Mesmo que sem querer, o diretor fez talvez a mais bela homenagem que Jacques e Agnès poderiam receber.

Bruno Ghetti

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