Ano VII

Uma Vida Difícil

sexta-feira abr 13, 2012

Uma Vida Difícil (Una Vita Dificile, 1961), de Dino Risi

Cinema italiano, primeiros anos da década de 1960. Não havia nada melhor acontecendo em nenhum outro lugar do mundo. Nem mesmo a nouvelle vague francesa dos deuses Godard e Truffaut, ou a nouvelle vague japonesa de Imamura e Oshima. Tampouco o cinema americano, com mestres como John Ford, Otto Preminger, Howard Hawks e Raoul Walsh fazendo belíssimos filmes. Penso mais na quantidade de obras sensacionais que se produzia no país peninsular. Nesse período, sair uma obra-prima como Uma Vida Difícil, de Dino Risi, era um acontecimento corriqueiro na Itália de Zurlini, Fellini, Visconti, Antonioni, Freda, Olmi, Comencini, Monicelli, Cottafavi, Bava, Matarazzo, De Seta, Mastrocinque, Pasolini e alguns outros que não me ocorreram no momento. Até um cineasta de segundo escalão como Vittorio De Sica fez um grande filme nessa época: Duas Mulheres.

Em Uma Vida Difícil, comédia crítica que se insere nesse contexto especial da filmografia italiana, Silvio, um membro da resistência italiana, procura se esconder em um hotel no campo. No momento em que tenta convencer a proprietária a lhe dar abrigo, é capturado por um oficial nazista. Quando está prestes a ser executado, recebe a valiosa ajuda de Elena, a filha da dona do hotel, que mata o soldado com um golpe de ferro de passar roupa. Curioso comentário de Dino Risi sobre a situação da Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Um país do eixo ocupado por forças de outro país do eixo, com a ajuda militar de seu próprio país, contra grande parte de seu próprio povo. O ferro de passar roupa, instrumento doméstico, mata o oficial nazista, o invasor, elemento que está contra o que é da casa, da pátria. Essa moça salva sua vida e alcança um lugar em seu coração, mesmo que de início ele não fique muito certo disso. Começa assim a saga desse herói cativante interpretado por um espetacular Alberto Sordi.

É um herói que se recusa a ser manipulado. Recusa, por isso, algumas regras lamentáveis da sociedade, incluindo aí a bajulação, o rabo preso com o poder e o jogo de conchavos que é quase imprescindível para se dar bem como jornalista.  Com o fim da guerra, Sílvio pratica o jornalismo de esquerda, numa época em que a Itália estava passando o pires para se reerguer economicamente. Ele não tem dinheiro para nada, vivendo dias e noites de fome com Elena. Recusa um suborno que lhe deixaria rico, em nome de seus ideais. É um homem digno, incorruptível, algo raro naqueles tempos (algo raro hoje, daí a atualidade do filme).

Em uma das muitas sequências antológicas, Silvio e Elena são convidados por um marquês para um jantar na casa de monarquistas. O lugar parece um museu, onde a matriarca observa o jovem casal com ares de censura e descaso, e todos os outros convidados servem como contraponto à falta de modos e à fome que Sílvio e Elena demonstram à mesa. O garçom passa com um dos pratos. eles pegam metade da comida. Enquanto tentam comer sob os olhares de reprovação dos bonecos de cera da versão italiana da Madame Tussaud, ouvem no rádio a notícia de que os republicanos acabaram de vencer o plebiscito, e começam a comemorar, enquanto os monarquistas desesperados vão chorar em seus cantos, resguardados da alegria incômoda desses novos inimigos. É também uma breve aula de história. No pós-guerra, a população italiana praticamente se dividia entre republicanos – geralmente pobres e de esquerda – e monarquistas – ricos e nobres que não queriam mudanças. Era um país em processo de reestabelecimento econômico, após as ruínas deixadas pelo militarismo.

Há outras sequências maravilhosas, como quando Silvio entra numa festa chique para conversar com Elena, que já o havia abandonado por não compactuar com a miséria auto-induzida a que ele submetia o casal. Após muita confusão, algo tragicômico e tipicamente italiano, ele sai da festa e passa a cuspir nos carros que passam pela estrada à beira-mar (eles estão em um balneário próximo de Roma).

Conforme o filme avança dentro da década de 1950, a Itália já se mostra como um país que começa a entrar nos eixos, e novos milionários despontam no cenário. Silvio, para reconquistar Elena, aceita ser assistente de um desses novos milionários. Terá, realmente, sua dignidade abalada. É humilhado em público, na frente de Elena e de um monte de outros convidados. É o momento de reencontrar sua dignidade perdida. Dane-se Elena.

É incrível como Dino Risi conseque fazer um filme que é ao mesmo tempo engraçado, melancólico, aflitivo e crítico. Engraçado sobretudo pela atuação de Sordi, sublime ator de invejáveis recursos. Melancólico por mostrar que um homem íntegro tem poucas chances de não ficar para trás diante de um cenário típico de país que foi destruido economicamente. Aflitivo porque sentimos com ele o sofrimento do abandono, de não conseguir meios de sobreviver dignamente e caminhar de cabeça erguida ao mesmo tempo. Crítico pelos mesmos motivos pelos quais é melancólico e aflitivo, mas também por contextualizar muito bem o cenário italiano do pós-guerra, em que cada um, após o sofrimento, olhava apenas para o próprio umbigo.

Sérgio Alpendre

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