Ano VII

Habemus Papam

sexta-feira mar 2, 2012

Habemus Papam (2011), de Nanni Moretti

“É desnecessário lembrá-lo de que os conceitos de alma e subconsciente não podem co-existir”. Estas são as primeiras palavras (de ordem) que o psicanalista, interpretado pelo próprio diretor, escuta ao ser apresentado aos cardeais. É bastante claro que estes vértices, “espírito” e “consciência”, estão representados pelo encontro entre Igreja e psicanálise; porém, o foco aqui (como de praxe na obra de Moretti) está no ponto que, equidistante aos outros dois, fecha e dá equilíbrio ao triângulo: o corpo.

No momento em que ouvimos a frase acima (e somos apresentados ao psicanalista – bem como, veremos, aos demais personagens), a trama que dispara a problemática do filme já está desenrolada: numa sequência quase puramente visual, precisamente ritmada e coreografada, sabemos do falecimento do Papa e, através do rito que acompanha seu funeral, da reunião de cardeais na Santa Sé, de onde farão a escolha de seu substituto – e só sairão quando de seu anúncio. A votação e subsequente escolha de Melville (Michel Piccoli) trazem ao clérigo, homem devotado ao lado espiritual, uma tomada de consciência que gerará um choque sentido no momento de sua apresentação ao público, quando tem uma crise de pânico e se recolhe (levando a posterior sugestão do uso da psicanálise). A partir de então, é a relação deste corpo com o interno (mente/alma) e o externo (mundo) que interessará, e a atuação de Piccoli, mais precisamente as expressões e olhares que endereça a seus colegas, a si mesmo ou a um fora-de-campo (Deus?) é vital na materialização deste peso, que se não tem um choque sentido como em Abel Ferrara (cineasta materialista por excelência e famoso por introduzir a fórceps tal conflito em seus personagens – pensar em filmes como Maria, Os Viciosos, The Blackout), até porque estamos falando de uma comédia (e as gags espalhadas deixam claro que, apesar de pesado, o clima é irônico), não deixa de ter seus paralelos: Melville, apesar de uma espécie de negativo do personagem de Harvey Keitel em Vício Frenético – digamos que eles estejam nos extremos opostos da cadeia espiritual – também sente à sua maneira o peso da Existência, buscando uma saída para o sentimento de inadequação ante o mundo (o que também não é novidade para Moretti, lembremos do produtor em O Crocodilo, seu último filme).

Curiosamente, a saída (literal) buscada é diametralmente oposta à de outro personagem icônico: se Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) em 8 e 1/2, um diretor em crise criativa e pessoal, procura a Igreja para recobrar-se de momentos de (e remontar) sua vida, buscar harmonia e preencher o vazio que o consome, o recém-escolhido Papa ignora a própria doutrina (“extra ecclesiam nulla salus” – não existe salvação fora da igreja) e foge – do ambiente de convívio, dos olhos atentos de todos. A busca do equilíbrio, para estes personagens, há de coincidir com um escapamento do âmbito social em que estão inseridos. Essa idéia, no caso de Moretti, é corroborada pela forma que o espaço é utilizado: não há interesse na criação/estabelecimento do que chamaríamos de espaço fílmico, o espaço (físico) aqui é utilizado como agente de compressão (a Santa Sé) e relaxamento (todo o “lado de fora”, a cidade) do corpo. A partir do momento da fuga, pouco importam os locais que Melville visita: o metrô, uma padaria, uma loja, um consultório, todos são locais indefinidos e flutuantes, como que as paisagens de um road movie, funcionando apenas como palco para o lançar-se ao desconhecido na busca de auto-conhecimento – ou ao menos na fuga de um mundo dominado pelo caos, condição comum a todos os filmes supracitados e novamente território familiar na obra do diretor. E se tal mundo aqui é praticamente isolado no microuniverso do Vaticano e no que o concerne, Moretti aproveita para fazer do mesmo uma maquete da vida em sociedade: temos a necessidade de manter as aparências (não só na óbvia opulência da Igreja, mas nos contatos e lorotas do porta-voz à imprensa, ou na hilária participação do guarda gordinho, que faz as vezes de Papa no quarto enquanto este está sumido), o culto à personalidade ou mesmo a necessidade da figura autoritária para manter a máquina girando. A situação permite ainda uma parábola entre a posição dos cardeais, homens que, suspensos de suas atividades de cidadão comum, não só ficam à mercê do porta-voz como preferem não assumir a responsabilidade do papado, e a passividade dos partidos de esquerda Italianos, há tempos alvos do diretor – também notório pelos ataques a Berlusconi (inclusive em seus filmes).

Sobre a Igreja, ao contrário do que se pode imaginar (e do que seria tentador na mão de muitos), Moretti evita uma postura contestadora: não há ironia quanto a fé e os valores cristãos, ou insinuações (ou sequer questionamentos, na verdade) sobre presença ou ausência de um Deus. Por outro lado (o lado “de fora”), não há uma também provável inclinação para o lado da iniquidade humana: fora da Igreja, Melville encontra um alívio não só no teatro, mas também no encontro com pessoas incautas de sua identidade/posição. É com esse olhar despido de julgamento que os personagens são apresentados, humanos com suas devidas peculiaridades.

Partindo de uma comédia acessível, Moretti consegue colocar em eixo seus temas preferidos, a situação sócio-política da Italia (do mundo, se preferir) e a depressão, o vazio, a ansiedade em lidar com a expectativa da vida em sociedade. Num momento em que o cinema, ao abordar tais assuntos, cisma em pender para o silêncio, a reticência – que parecem “validar” o produto enquanto arte -, tal feito por si só já parece representar um vento de mudança (“clássico=moderno”, sintetizou um certo Godard). E se “a depressão é o oposto do narcisismo”, conforme diz o psicólogo no filme, seríamos então vítimas de nosso próprio individualismo? Numa Itália ainda refém das práticas Berlusconescas, a questão torna-se ainda mais relevante. Fruto do mais Italiano cineasta da atualidade, Habemus Papam é um mordaz filme-catástrofe.

Leandro Schonfelder

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br