Ano VII

“Nothing gold can stay”: Coppola anos 1980

segunda-feira mar 5, 2012

Que a luz embriagante da maioria dos filmes que Coppola realizou nos anos 1980 não nos engane: a década, para ele, é atravessada pela melancolia. Vidas Sem Rumo, de 1983, e Jardins de Pedra, de 1987, representam os dois momentos mais pesados desse sentimento – dois filmes sobre a perda irreversível. Mas mesmo Peggy Sue, Seu Passado a Espera (1986), aparentemente o filme mais leve de Coppola (e não à toa seu maior sucesso comercial na década), que já edulcorou sessões da tarde na TV aberta, visto com mais atenção revela-se um filme profundamente triste e resignado.

A obra de Coppola nos anos 1980 faz um caminho nítido: do início ao fim de uma utopia. O Fundo do Coração (1982) e Tucker (1988) pontuam esse início e esse fim. No primeiro, Coppola apresenta o que ele acreditava ser o cinema do futuro (o cinema eletrônico). No segundo, ele conta como se deu a derrocada desse otimismo tecnológico. O tema de Tucker – Um Homem e Seu Sonho nada mais é que a formação (em torno de 1980) e a queda precoce da Zoetrope Studios, após o fracasso retumbante de O Fundo do Coração, que era apenas a primeira produção da companhia (ela vai à falência antes mesmo de existir verdadeiramente, portanto). Essa trajetória pessoal de Coppola é espelhada na história de Preston Tucker, empreendedor e visionário que, na segunda metade dos anos 1940, projetou um carro que tinha tudo para revolucionar a indústria automobilística, mas foi sabotado por um complô formado por políticos que, com o apoio da imprensa, defenderam os interesses das grandes montadoras de Detroit. Coppola mostrava, assim, de que modo o sistema havia se corrompido a ponto de impossibilitar justamente aquilo que está na origem de todo seu progresso: as grandes ideias de homens como Tucker e, é claro, como ele próprio, Francis Ford Coppola.

“Eu não sou um diretor, eu sou um industrial”, afirmou Coppola na época da realização de O Fundo do Coração. Ele se vê antes como um administrador de companhia artística do que como um diretor de cinema. E, de fato, o que sua biografia e sua carreira demonstram é menos um simples realizador de filmes do que um artista empreendedor, um sonhador desbragado, um aventureiro na linhagem de Howard Hughes (que faz uma aparição em Tucker, interpretado por Dean Stockwell), Michael Powell (que é citado em Tetro, e que não hesitaria em subir uma cachoeira a nado carregando pesados equipamentos caso isso fosse a única forma de chegar a um determinado lugar de onde se rodaria um plano imprescindível para um filme) ou mesmo Georges Méliès (para citar o pai de todos esses malucos sonhadores).

Mito, magia, artifício

Depois de Apocalypse Now (1979), exaurido artisticamente, Coppola se pergunta o que mais pode fazer. Enquanto isso, o filme ganha as bilheterias mundo afora e o salva da ruína financeira.

Sonhando reviver a era de ouro dos grandes estúdios, Coppola adquire, por 6,7 milhões de dólares, as antigas instalações da Hollywood General e ressuscita a Zoetrope, sua companhia produtora originalmente criada em 1969, mas congelada após o prejuízo acarretado por THX 1138 (1971), de George Lucas. Com as novas instalações da Zoetrope, situadas em São Francisco, Coppola passa a dispor de nove estúdios e trinta e quatro ilhas de edição. Seu projeto é equipar e administrar uma usina de filmes à moda antiga, com roteiristas e atores trabalhando sob contrato de exclusividade. Mas essa usina deve ser também uma grande família ou trupe de teatro, mais ou menos como a montadora de automóveis que anos depois ele filmará em Tucker: uma empresa familiar que quer abraçar o Universo; uma garagem particular que funciona como um galpão de fábrica e vice-versa.

O primeiro projeto dos estúdios Zoetrope, conforme já assinalado, será O Fundo do Coração, cujo roteiro, a princípio, consiste numa comédia romântica genérica ambientada em Chicago. O que Coppola tem em mente, todavia, é um tanto mais arriscado. Ele quer testar a estrutura faraônica que montou. O projeto inicial do filme, proposto pela MGM com fins estritamente comerciais, é adaptado então às novas ambições de Coppola. A ação é transferida de Chicago para Las Vegas, com o detalhe de que esta será inteiramente reconstruída em estúdio (lembrando Noites Brancas [1957], de Luchino Visconti, rodado num impressionante cenário de estúdio que reproduz todo um bairro de Livorno). Antes um mero filme romântico que Coppola realizaria por dinheiro à espera de um projeto mais instigante, O Fundo do Coração é agora um musical que terá ninguém menos que Michael Powell como conselheiro artístico e Gene Kelly como supervisor das coreografias. Se cineastas como Maurice Pialat, Jean Eustache e Philippe Garrel (que também surgiram entre os anos 1960 e 70) buscavam um retorno a Lumière e à apreensão imediata da matéria bruta do real, Coppola, no dealbar dos anos 1980, queria voltar a Méliès e celebrar a ilusão cinematográfica, a fábrica de sonhos. A ideia era promover, pelo artifício, uma explosão de poesia e fantasia utópica.

Mas dedicar-se tão somente a um produto industrial para encantamento das massas, como fizeram George Lucas e Spielberg, não deixaria Coppola plenamente satisfeito. Era necessário também experimentar com as formas propiciadas pela filmagem em estúdio e pelas novas tecnologias de imagem, a exemplo do que Syberberg havia feito com seu sistema de projeção frontal (Hitler – Um filme da Alemanha, aliás, foi distribuído nos EUA graças a Coppola). É preciso lembrar que Coppola pertence àquela geração do cinema americano que, talhada nas universidades e na cinefilia, buscou integrar as lições dos mestres clássicos aos achados formais do cinema moderno europeu. Fundir Cantando na Chuva, Visconti e Syberberg não era um absurdo para Coppola, mas uma meta.

Em New York, New York (1977), filme com o qual O Fundo do Coração dialoga bastante, Scorsese já havia tentado evocar o espírito dos musicais dos anos 1940/50. A noite de Nova York era reconstituída sob um céu artificial. O filme transbordava em nostalgia pela época dourada do sistema hollywoodiano, aquela época em que os estúdios produziam em série as “mentiras” que maravilhavam a América e o mundo. Só que os cenários fantasiosos e lúdicos, em New York, New York, são ocupados não pelos movimentos elegantes de Fred Astaire, mas pelas explosões abruptas de um Robert De Niro ainda carregado da violência de Taxi Driver. A simples presença transtornada do ator basta para ressignificar o clima nostálgico, acusando o intervalo irreparável que existe entre o cinema clássico homenageado e o cinema do próprio Scorsese.

Para essa escola de cineastas cinéfilos dos anos setenta, o período clássico é um mito que fascina e assusta ao mesmo tempo. É como se aquele cinema hollywoodiano que atingiu seu apogeu nos anos cinquenta, antes do declínio dos estúdios, tivesse deixado um legado obrigatório, e o cinema americano não pudesse se reinventar senão revisando sua própria mitologia. Mas a referência ao classicismo só tem valor na medida em que é acompanhada de uma reelaboração que ultrapassa o mero pastiche de gêneros mortos e atinge uma liberdade formal, uma potência estética que deriva da recusa a uma arte calcada puramente nos efeitos. O que Coppola, Scorsese, John Carpenter ou De Palma buscam reencontrar em suas releituras dos modelos clássicos não é a forma aparente das obras, mas a própria força criadora que subjaz a elas. Por isso, filmes como Vidas Sem Rumo e Starman (Carpenter, 1984) possuem para nós, hoje, a mesma magia que os filmes dos anos 1950 possuíam para seus diretores. Eles foram atrás do impulso primordial que conduz o homem a produzir a magia por intermédio da arte, não se limitando a emular os efeitos, as técnicas e as texturas pelas quais essa magia aparecia no cinema clássico. Para atingir algum encanto verdadeiro, é preciso rejeitar o verniz fetichista, a imitação competente das aparências do cinema do passado – é preciso ir por um caminho mais difícil. Coppola, sabendo disso, saiu em busca de uma nova matéria plástica e de uma nova forma de pensar e fazer um filme, dando origem à grande empreitada de O Fundo do Coração.

O fim do mundo (e seu recomeço)

1979: Coppola finaliza Apocalypse Now e estira a representação cinematográfica ao limite, revelando a outra face do cinema-espetáculo (aquela que Guerra nas Estrelas recalcava – curioso notar que Coppola, num primeiro momento, havia sugerido que George Lucas dirigisse o filme). Naquela monstruosa ópera sobre a guerra do Vietnã, realidade e ilusão se confundiam. A guerra já era espetáculo ou o espetáculo agora se transformou em guerra? O diário subjetivo do personagem de Martin Sheen se mistura ao diário de filmagem do diretor Coppola, ao passo que a guerra em outro continente se transmuta em guerra doméstica. Um filme enfurnado nas florestas pluviais asiáticas ou no inconsciente da América? A irrealidade do que é filmado é recompensada – ou agudizada – pela realidade da filmagem. Não importa se o que vemos é uma simulação da guerra, mas sim que essa simulação é real. O helicóptero é um helicóptero, a explosão é uma explosão, e o filme se revela, assim, um documentário sobre a possibilidade de fabricar a guerra por meio do artifício, da mise en scène e da loucura. Impossível ver Apocalypse Now sem pensar na filmagem de Apocalyse Now; filme e making of se equivalem. Como um monstro daqueles pôde ser filmado? O espetáculo total wagneriano atinge talvez seu grau último. Caberá a Coppola, depois, recomeçar, reinventar seu cinema através de um novo meio e de uma nova técnica: o vídeo e a pré-visualização, respectivamente.

“Eu fiz O Fundo do Coração para mim, para vê-lo. E para aprender algumas coisas. Para aprender a dominar essa técnica”, disse Coppola aos Cahiers du Cinéma em 1982. O método de composição desse filme era completamente novo para Coppola: o roteiro era dividido em parágrafos individuais não organizados em ordem cronológica; eles ficavam gravados em disquete, podendo ser modificados e embaralhados mais facilmente do que se estivessem impressos em papel; um storyboard com quinhentos desenhos foi “transcrito” em vídeo e servia de referência para todos os diferentes departamentos encarregados do filme; os atores registravam suas falas sobre um fundo musical acrescido de efeitos sonoros; o material era em seguida sincronizado com o storyboard gravado em vídeo; na medida em que os ensaios progrediam, eram feitas fotos em Polaroid que substituíam os desenhos do storyboard. Tudo isso permitia que Coppola pré-visualizasse o filme e tomasse decisões estéticas que envolviam desde a reescrita de partes do roteiro até o trabalho dos atores e mesmo a montagem. Depois de ensaiar com os atores e com os técnicos, Coppola se fechava em sua torre de controle e, com seus mil olhos, observava a cena através de monitores de vídeo, podendo já efetuar uma primeira montagem da cena no momento mesmo em que ela estava sendo rodada. A totalidade do filme era abordada simultaneamente: a pré-produção, a produção e a pós-produção aconteciam todas ao mesmo tempo.

Se Apocalypse Now era o fim do mundo, O Fundo do Coração é seu recomeço. Nas primeiras imagens do filme, a câmera deflagra um universo em criação. O céu, as estrelas, o cosmo, o título do filme em luz de néon vermelha. Depois a câmera atravessa as nuvens e desce até o chão, onde se veem passos gravados na areia, rastros deixados por pessoas que caminharam na direção de uma cidade de luz, uma miragem no meio do deserto. Várias esculturas luminosas começam a surgir trazendo os créditos iniciais do filme. Coppola nos introduz num mundo recriado em estúdio, assumidamente artificial e exagerado.

Ao reconstruir em estúdio uma cidade, Las Vegas, que, em si, já é feita de miniaturas e réplicas, Coppola passa da cópia ao simulacro. Segundo Jean Baudrillard, “a Disneylândia existe para esconder que é o país ‘real’, toda a América ‘real’ que é a Disneylândia (de certo modo como as prisões existem para esconder que é todo o social, na sua omnipresença banal, que é carceral). A Disneylândia é colocada como imaginário a fim de fazer crer que o resto é real, quando toda Los Angeles e a América que a rodeia já não são reais, mas do domínio do hiper-real e da simulação”.[1] O mesmo se pode dizer de Las Vegas em O Fundo do Coração. A cidade reconstruída em estúdio não regenera a existência de uma Las Vegas real, que se opõe à sua representação fictícia; ela afirma, inversamente, que a própria cidade real já é um imenso cenário, uma ficção, um parque temático onde o imaginário americano é exibido em cenários kitsch e signos histéricos. Mais ainda: essa cidade nada mais é que o holograma de toda a América. O casal protagonista do filme, formado por Hank (Frederic Forest) e Frannie (Teri Garr), mora numa casa tipicamente americana, numa rua tipicamente americana, com um trailer tipicamente americano estacionado junto à calçada. Mas tudo é cenográfico e forjado artificialmente; a noite e o dia são produzidos pela variação da iluminação do estúdio; as plantas na frente da casa são de mentirinha; a rua termina num fundo pintado que não disfarça sua bidimensionalidade. O american way of life já não existe senão como simulacro.

Na primeira cena do filme, Frannie aparece arrumando a vitrine da agência de viagens onde trabalha. Ela é filmada pelo lado de fora. No vidro que se interpõe entre ela e a câmera, refletem-se todas as luzes de néon do cenário. Frannie está encarcerada no mundo da imagem e do sonho enlatado. A “ideologia da felicidade” americana, que tem na comédia musical talvez sua expressão mais acabada, encontra aqui um limite: se os personagens quiserem voar, baterão no teto do estúdio e cairão de volta em sua prisão de néon. O happy end de O Fundo do Coração é o disfarce de uma grande amargura, como será também em Peggy Sue.

O aspecto insólito da narrativa é balanceado pela realidade quase literal da encenação. Por exemplo: quando Hank e Frannie brigam, ele vai para a casa de Moe (Harry Dean Stanton) e ela para a de Maggie (Lainie Kazan). Hank e Moe conversam. No meio da conversa, a luz começa a baixar no apartamento de Moe e aumentar no cenário atrás dele; a parede se torna transparente e o apartamento de Maggie aparece. As conversas se misturam por um momento, até que o foco se desloca definitivamente para o diálogo entre Maggie e Frannie. É feita, portanto, uma fusão “natural”, sem trucagem óptica ou eletrônica. Os dois cenários coexistem no mesmo set. Para passar de uma cena à outra, Coppola realiza uma mudança de iluminação. Tucker retomará uma técnica parecida para encenar as conversas ao telefone: quando uma pessoa liga para a outra e esta atende o telefone, a câmera realiza um travelling lateral e os dois cenários ficam em quadro, adjacentes, dividindo a tela ao meio, separados por um tapume de estúdio – um split-screen natural.

O mundo-ilusão, a cidade-miragem criada por Coppola em O Fundo do Coração é concreta, como um cenário teatral que presenciamos ao assistir a uma peça – sabemos que ele é artificial, mas não duvidamos de que ele esteja ali na nossa frente. Uma alucinação real. Pois assim como os helicópteros e as explosões de Apocalypse Now, uma vez que são verdadeiros, tornam irrelevante a indagação sobre a veracidade ou não da guerra que vemos se desenrolar diante da câmera, assim também os cenários e as luzes de O Fundo do Coração, pela materialidade com que aparecem na tela, tornam automaticamente real o mundo artificial do filme. Aquele mastodonte cenográfico foi de fato construído para o filme (novamente, impossível ver o filme sem pensar na sua filmagem). A mise en scène se impõe como um fato que vem a primeiro plano. A emoção pode ser fake, mas o jogo dos atores e da câmera não é. A recusa da psicologização e o recurso ao estereótipo favorecem a percepção do cenário, da luz, da música, e estes se tornam tão importantes quanto os atores.

As coreografias coletivas de O Fundo do Coração são compostas tanto pelos figurantes que dançam nas ruas quanto pelos letreiros luminosos que piscam sem parar. Não são apenas os corpos que dançam, mas sobretudo as cores, os objetos, os cenários e as luzes de néon. O mundo se move permanentemente ao redor dos personagens. As imagens por vezes se fundem umas nas outras, se fagocitam mutuamente numa debacle multicolorida. Na maior parte do tempo, contudo, a câmera se movimenta pelos cenários em longos planos fluidos e ininterruptos. O filme inteiro é como um travelling perpétuo.

O principal cenário do filme é o ferro velho para onde Hank leva a menina de circo que conheceu (Nastassja Kinski), e com quem tem um caso passageiro: um lugar isolado onde sucatas de automóveis, letreiros de néon e pedaços de brinquedos de parque de diversão se espalham como ruínas de um mundo esquecido, ou como nacos de sonhos abandonados no deserto. O sonho americano despedaçado e desertado.

Stay gold

“Apocalypse Now era um filme sobre os helicópteros. O Fundo do Coração é um filme sobre o néon. E o próximo, Vidas Sem Rumo, será um filme sobre o pôr-do-sol”, disse Coppola quando se preparava para filmar a primeira das duas adaptações de romances adolescentes que ele lançaria em 1983 (o segundo filme, naturalmente, é O Selvagem da Motocicleta).

O pôr-do-sol tem aí dois sentidos. Primeiramente, porque se trata de um filme sobre juventude e perda da inocência. Depois, porque é o próprio sol do cinema que se põe. “O pôr-do-sol”, afirma Coppola, “é uma coisa deliciosa, mas no justo momento em que ele atinge seu ponto de perfeição, ele está também em vias de morrer, como a juventude” – e como o cinema clássico, que alcançou seu apogeu quando o sistema dos estúdios já começava a se desagregar. Vidas Sem Rumo é um filme nostálgico: ele lamenta, simultaneamente, a juventude e o classicismo perdidos.

Justamente porque a era clássica, enquanto tal, já está fechada e superada, ela pode ser alvo de um olhar nostálgico. Nos anos 70 e 80, a “grande forma” hollywoodiana soa como um ideal perdido, uma utopia. Colocar-se em relação com esse modelo utópico pode ser uma tarefa prazerosa, mas pode também gerar inibição, dificuldade, quiçá sofrimento.

Há um plano de Vidas Sem Rumo que condensa o sentimento de Coppola no momento em que realiza o filme. Dallas (Matt Dillon) recebe a notícia da morte de Johnny (Ralph Macchio). Ele está numa cama de hospital. Após ouvir a má notícia, seu corpo se contorce num intenso movimento dramático, como uma figura num quadro de Tintoretto. Com o braço esticado, ele segura um canivete. O enquadramento destaca a dramaticidade da pose. Esse plano-tableau maneirista cristaliza, para além do sentimento do personagem, o tormento que é rodar um plano com a consciência de que toda a beleza cinematográfica já foi atingida e ultrapassada três décadas antes pelos mestres do cinema clássico. A reação de Coppola é uma estilização redobrada. Da mesma maneira que Dallas, para expressar sua dor, recorre a um movimento antinatural e exacerbado, Coppola filma um pôr-do-sol mais dourado do que qualquer pôr-do-sol pode ser, tinge as noites de um azul que só existe no cinema, empresta ao visual dos jovens uma iconicidade de que os corpos só desfrutam no mundo da imagem e do clichê.

Na sequência do drive-in, um confronto se esboça entre as duas gangues rivais do filme (os “greasers” e os “socs”, basicamente os pobres e os ricos – o filme conta a história de uma luta de classes). Face à iminência da briga, o personagem de Emilio Estevez quebra uma garrafa e se prepara para o confronto. O movimento de quebrar a garrafa tem um quê de estranho, até de patético: ele gira o corpo deixando que a garrafa quebre ao se chocar na grade ao seu lado; um movimento no limiar da violência instintiva e da coreografia ensaiada, um gesto que ocupa um elo perdido entre Juventude Transviada e West Side Story. Acontece que 1983 não é 1955 nem 1961, e Emilio Estevez não é James Dean nem Diane Lane é Natalie Wood. O sol já se pôs. O gesto de Emilio Estevez soa menos como uma imitação derrisória dos bad boys do passado do que como uma lembrança nostálgica de um cinema que não existe mais. Embora ambientado nos anos sessenta, o filme não deixa em momento algum de falar dos sentimentos que circulam no ar no começo dos anos oitenta.

A estranheza dessa e de outras cenas faz parte do filme. Quaisquer que sejam os esforços do cineasta para prestar homenagem aos filmes da sua infância (toda a parte em que Johnny e Ponyboy fogem e ficam escondidos na igreja abandonada, por exemplo, é inspirada em O Mensageiro do Diabo [1955], obra-prima única de Charles Laughton), aos mestres clássicos, aos grandes gêneros de Hollywood etc., permanece visível na sua obra uma defasagem entre dois “programas de verdade” inteiramente distintos, a saber, o programa de verdade do cinema a que ele pertence de fato e o programa de verdade do cinema clássico que lhe serviu de referência. Nenhum artifício, nenhum milagre pode fazer o diretor entrar de corpo inteiro num regime de expressão que não pertence ao seu tempo. Ele está condenado a homenagear um mundo do qual não pode fornecer senão uma imagem deformada. A homenagem vem inevitavelmente acompanhada, então, de uma melancolia, às vezes de um mal-estar. Algo se perdeu para sempre, nada pode mudar isso. Da consciência dessa perda nasce um estranhamento (os corpos, os gestos e os cenários não se entendem por completo – Peggy Sue traz excelentes momentos em que isso vem à tona), um ruído que os grandes diretores sabem dobrar a seu favor, como é o caso de Coppola.

“Nothing gold can stay”, o verso crepuscular de Robert Frost lido por Ponyboy (C. Thomas Howell) numa das cenas mais bonitas de Vidas Sem Rumo, pode ser tomado como o refrão de todos os anos 1980 de Coppola. Mas aí precisamos lembrar também da belíssima música-tema do filme, cantada por Stevie Wonder: “Stay gold”, ou seja, o contrário do verso de Frost. A queda é inevitável, mas resista a ela mesmo assim.

Luiz Carlos Oliveira Jr.



[1] Cf. Simulacros e simulação, Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 21.

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