Ano VII

Anos 60: quando Coppola tornou-se um homem

sexta-feira mar 2, 2012

O Coppola do começo de carreira é bem diferente da combinação de megalomania, excelência artística e poder que o marcaram nos anos 1970, quando tornou-se rico da noite para o dia com o inesperado sucesso de O Poderoso Chefão, prestigiado com as seis estatuetas de O Poderoso Chefão II, reconhecido pela obra-prima A Conversação e poderoso a ponto de teimar em rodar Apocalypse Now nas Filipinas – no período de chuvas torrenciais, uma das causas para o caos dos bastidores.

O primeiro Coppola, que vai de 1962 a 1969, é um jovem sonhador – porém, jamais inocente –, brigando para se tornar um autor e ser reconhecido como tal por uma indústria que não dá muita bola para isso. Naquele momento de incertezas em Hollywood, em que os chefões dos estúdios não sabiam como fazer filmes para os jovens dos anos 1960 que passavam a ir aos cinemas sozinhos, Coppola foi o primeiro a fazer a transição banco da universidade-carreira de cineasta num filme bancado por estúdio (Warner Bros.).

Na primeira fase da carreira há uma subdivisão entre a primeira parte da década de 60 (desinteressante) e a segunda (interessante e irregular). Há os filmes baratíssimos feitos sob a proteção de Roger Corman, os projetos pessoais que Coppola dirigiu e roteirizou e os encomendados no qual teve pouquíssimo controle. Há também o rascunho de alguns traços de estilo e temas que seriam largamente utilizados nos anos seguintes – o mais recorrente e perceptível deles é a família.

Não faz sentido considerar neste comentário sobre o jovem Coppola Batle Beyond the Sun (Nebo Zovyot) e The Bellboy and the Playgirls, ambos de 1962, dois filmes que ele entrou depois para consertar o estrago. Fica de fora também o projeto paizão The Terror, que Corman cedeu o assento de diretor para os então desconhecidos Coppola, Monte Hellman (hoje cultuado diretor bissexto), Jack Nicholson (que ainda não havia chamado atenção pelos filmes que viria a fazer como ator de Hellman no restante da década) e Jack Hill (que viria a dirigir dois dos mais divertidos filmes blaxploitation nos anos 70, Coffy e Foxy Brown).

Desse primeiríssimo momento, Coppola assina dois filmes precários que sobrevivem mais pela curiosidade cinéfila do que pela talento. É verdade que há os jogos de luz e sombra de Dementia 13 (1963) ou as sequências musicais libidinosas de Tonight For Sure (1962). Mas é bem pouco comparado com o que seria feito no restante da década.

Filme de velho, filme de jovem

É necessário passar por uma crucial contradição ao falar da carreira de Coppola na segunda metade da década de 60: aos 29 anos, um cineasta disposto a romper amarras e que acabara de fazer um filme tomado de espírito jovem, dirigiu um musical datado e empoeirado, O Caminho do Arco-íris (Finian’s Rainbow).

Mais interessante ainda: o musical protagonizado por Fred Astaire e rodado quase inteiramente em estúdio, sobre o qual teve pouquíssimo controle, foi feito logo em seguida de Coppola dirigiu seu primeiro grande filme, Agora Você É um Homem (You’re a Big Boy Now)

Enquanto O Caminho do Arco-íris é embebido numa aura caquética do que se fazia em Hollywood 30 anos antes, Agora Você é um Homem é nova onda. Um é contenção e repressão – o sexo comportado e a mulher a mercê do amor do homem –, outro é arrebentação. O que dizer de sua primeira sequência? Puro orgasmo!

Biblioteca Municipal de Nova York. Silêncio e concentração. Alguns pigarros que acordam os leitores e quebram a atmosfera austera. A câmera vagarosamente se movimenta em direção a uma porta no fundo do corredor. Mais silêncio. Mais pigarros. Num repente, uma linda loira blasé rompe o quadro, passos fulminantes. A câmera recua abruptamente, amedrontada pela presença dessa garota que caminha sem hesitar – sabe que é gostosa.

Ao fundo, um rock com refrão chiclete e cara de anos 60 acompanha seus passos. “Girl, beautiful girl, can I look at your insides?/ Girl, wrapped up fur, I’m just mad for your outsides!”. São os The Lovin’ Spoonful.

Em três minutos de abertura do filme, em que a garota no vestido amarelo anda pela biblioteca e deixa todos a seu boquiabertos, Coppola faz um comentário sobre a modernidade em diversos aspectos. Na música, que é o rock; na moda, que são os vestidos que passam a mostrar mais que esconder; na sensualidade feminina, mais agressiva; no cinema, adotando um outro jeito de apresentar a personagem; na relação masculino/feminino, já que é a mulher que deixa todos a seus pés, transa com quem bem entender.

Agora Você é Um Homem é um filme em que adolescentes acoçados pela testosterona peitam os mais velhos. Contraposto a O Caminho do Arco-íris fica ainda mais insuportável de assistir. Pior que o fato de nada funcionar no longa é a triste sensação de que aquilo tudo ao que o filme se agarra passou: sua estrela principal (Fred Astaire), o musical nos moldes do que se fazia na Era dos Estúdios ou o compositor por trás da peça da Broadway que daria base ao filme, Burton Lane. Não é nem homenagem libertária ao musical – o que Coppola inicialmente pretendia – nem o produto facilmente vendável que o estúdio esperava.

É nevrálgica a colocação de Renata Adler publicada no The New York Times na época do lançamento, em outubro de 1968. “Existe algo incomodamente depressivo em assistir O Caminho do Arco-íris neste ano, com um Fred Astaire envelhecido, longe do auge, fraquejante e esgotado”. Se pensarmos no Astaire endiabrado com a canção de Irving Berlin, Puttin on the Ritz, o baque é ainda mais duro.

Igualmente na carreira de qualquer autor, todavia, as bases lançadas nos primeiros filmes são recorrentes na fase mais madura. É inegável perceber que O Caminho do Arco-íris é influência direta na realização de O Fundo do Coração (1982), que por sua vez tem algumas das cenas musicais semelhantes às de Tetro (2009).

“Para o cineasta Francis Ford Coppola, nunca existiu nada além da família”, definiu o crítico Inácio Araújo quando do lançamento do filme mais recente do diretor. Tem razão. Mas para nós que assistimos a seus filmes existem outras texturas também fundamentais, por exemplo, o carinho com que Coppola trata a música no cinema e insere pequenos números em seus filmes. E isso vem desde Tonight For Sure.

O amor maduro

Do ambiente jovial de Você é um Homem e dos cenários ultra coloridos de O Caminho do Arco-Íris, Coppola vai para a maturidade, tonalidades moderadas, e realiza o grande filme da sua primeira fase, Caminhos Mal Traçados (The Rain People, 1969). Mergulhado, como qualquer jovem agitador, na contracultura, ele abraça os equipamentos mais leves, cai na estrada, faz um road movie libertário à Sem Destino, cheio de cortes secos à Godard e com gente de verdade, de carne e osso.

Esse hiato da indústria que assistiu à chegada de uma geração com outros métodos é um momento muito especial do cinema norte-americano, estejamos falando dos grandes filmes, como esse de Coppola, ou de outros menores, como Cada um Vive Como Quer (Five Easy Peaces, 1970). É quando o mood das pessoas e as prioridades de quem faz cinema convertem para algo diferente.

Está longe de ser coincidência, então, a conexão de Caminhos Mal Traçados com Alice Não Mora Mais Aqui (Alice Doesn’t Live Here Anymore, 1974). É como se fossem dois lados de um LP. No Lado A, assistimos a uma mulher que resolve dar um breque na vida – incluindo aí um “tempo” com o marido, cuja presença só se faz pela voz – e embarca numa viagem sem rumo para se encontrar. No Lado B, que seria o filme de Scorsese, acompanhamos a mulher que decide fixar-se em um lugar após abandonar o passado.

E se houvesse um Lado C nesse fictício LP lá estaria impresso Cada um Vive Como Quer, que é a perspectiva masculina do rompimento e a tentativa de viver uma outra ordem.

Em Caminhos Mal Traçados, cuja sequência de abertura que guarda os créditos é tão bela quanto tristonha, Coppola aperfeiçoa outra característica marcante dos longas posteriores: os atores. Se nos filmes anteriores tínhamos atuações corretas, é neste que atores novatos estraçalham. Shirley Knight, até então uma pouco notada atriz do Kansas, acerta a partitura da personagem. James Caan, um pouco mais consolidado, nos entrega uma candura e inocência arrebatadoras.

Depois desse filme – maravilhoso, mas fracasso de bilheteria –, Coppola já mostrara que sabia dirigir, e bem. Foi então que a Paramount, depois do desgaste que ele teve com a Warner Bros. por causa do filme de George Lucas, THX – 1348, do qual era produtor, o contratou, após certa relutância, para realizar O Poderoso Chefão.

Inaugurava-se, então, uma outra fase: a do superstar outsider.

Heitor Augusto

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