Ano VII

J. Edgar

segunda-feira fev 13, 2012

J. Edgar (idem, 2011), de Clint Eastwood

Em que momento um projeto degenera-se? Quando um homem torna-se um anacronismo vivo?

Essas são perguntas centrais no cinema de Clint Eastwood. Pensemos no velho operário aposentado de Gran Torino, às voltas com uma vizinhança de imigrantes e carros modernos. Ou nos pistoleiros de Os Imperdoáveis, o faroeste crepuscular por excelência. Ou ainda em Bronco Billy, com seu cowboy de circo, fora do tempo.

E quanto a J. Edgar? Ao jogar com o tempo, ao fazer esse ir-e-vir dos anos 1920/30 até os anos 1960/70, enfim, ao opor constantemente o jovem John ao lendário J. Edgar Hoover, o filme parece se perguntar: o que fazemos de nossos sonhos, de nossos ideais? Será que, como se pergunta o velho Hoover num dos últimos diálogos do filme, também destruímos aquilo que mais amamos?

Pois o filme não nos fala apenas do FBI, a instituição erguida quase do nada e tocada por mais de quarenta anos por Hoover. O que interessa a Eastwood é algo muito maior: o homem e o mundo que constrói para si. É um estado de coisas em que estão em jogo (desejo de) liberdade e (necessidade de) controle – e como a balança irá, entre os dois momentos do filme, pender radicalmente para o policialesco, o paranóico e a tirania.

Já na primeira cena, vemos um Hoover bastante envelhecido e questionado, dizer: “Está na hora desta geração ouvir o meu lado da história”. É um homem que, vamos ver pouco a pouco, privilegia o ter, a notoriedade. Já o Hoover de 1919 é um idealista, mas é sobretudo como um homem de ação que se impõe. É um conservador, claro, mas seus gestos e sua inteligência estão voltados para a liberdade – ou pelo menos para sua ideia de liberdade.

Sua técnica (os métodos de investigação), porém, não é inocente. Fichar, classificar, monitorar: são atos de vigilância, de poder. E em algum momento as coisas irão degradar-se: o que era meio torna-se fim em si mesmo. O homem essencialmente moral dará lugar a um maníaco. Sua euforia de juventude irá tornar-se não apaziguamento (de uma tarefa bem cumprida), nem mesmo um certo cansaço, mas puro ressentimento – de quem se acredita incompreendido, de quem cultua uma aparência sem falhas.

O Hoover de Eastwood é, portanto, um homem cindido, dilacerado entre a busca do absoluto (no trabalho) e uma vida pessoal imperfeita como todas demais. E por isso devemos olhar sua vida pessoal não como mero fetiche pela intimidade. A questão, aqui, é mais do que simplesmente “humanizar” o vilão Hoover.

Pois vejamos as cenas, notáveis, com sua mãe: todo o mal que irá emergir em Hoover já está ali, em germe nos gestos mais cotidianos de proteção de sua mãe. Onde termina o zelo materno e onde se inicia essa tão marcante intolerância aos defeitos, às fraquezas?

J. Edgar é, portanto, a história de um homem que torna-se uma múmia. Há, primeiro, a megalomania – e o apego desmedido ao que se poderia chamar sua obra. O prédio gigantesco do FBI, do qual enxerga os rituais de passagem de poder do alto de sua janela, é sua pirâmide. E há, ainda, aqueles arquivos pessoais, que ele faz questão que sejam destruídos com sua morte, é seu tesouro exclusivo.

E, afinal, quem é este homem? Talvez o plano mais notável do filme seja aquele que, já no fim de J. Edgar, acompanhamos Clyde Tolson, com quem partilha uma vida, entrar em seu quarto. Neste momento, sob o olhar virgem do amante, descobrimos que estamos diante de um mistério.

Juliano Tosi

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