Ano VII

O Artista

sábado fev 11, 2012

O Artista (The Artist, 2011), de Michel Hazanavicius

É praticamente impossível não notar que a mera existência de O Artista é, por si só, um caso a se estudar, o que seria um exercício quiçá até mais interessante do que o próprio filme. Como um longa rodado em preto e branco, mudo, com roteiro embalado apenas por trilha sonora, filmado numa janela em desuso (1.37:1, o formato de tela quadrado) e repleto de citações a outros filmes se infiltra na indústria, e mais, recebe dez indicações ao Oscar?

Em tempos em que pedir para o espectador contemplar uma imagem tornou-se um ato de resistência dos cineastas – e um exercício dolorido para um espectador educado pela televisão –, como um filme mudo vira o hit da temporada de premiações e consegue chegar até a espectadores que não cultivam a cinefilia com ardor, apresentando-se como o-filme-que-você-precisa-ver-porque-todo-mundo-está-comentando?

Algumas tentativas de resposta pairam ao nosso redor. Ter os Irmãos Weinstein como produtores já ajuda bastante a penetração de uma produção – lembremos que muito por causa do lobby da Miramax, a antiga empresa de Bob e Harvey Weinstein, Cidade de Deus conseguiu viajar e chegar a quatro indicações ao Oscar. É mais que sabido o talento da dupla em tirar da margem alguns filmes e colocá-los no centro dos holofotes, sejam eles bons (caso do filme de Meirelles) ou apenas medianos (O Leitor).

Outra pista para tentar entender a força de O Artista é a recepção saudosista que ele tem recebido de quem faz cinema. O filme coloca em cena a Hollywood dos anos 1920 e 30, da revolucionária e traumática passagem do cinema mudo ao falado. Não é preciso fazer muito esforço para sentir saudades de um tempo que não volta mais. Porém, o registro saudosista que tem acertado de cheio os que vivem de cinema parece atingir um lugar ainda mais escondido.

Mais do que pensar como era lindo o nosso cinema – e extrair da experiência de ver O Artista apenas um romantismo inócuo –, o ponto sensível é a saudade de um tempo em que o cinema ocupava um lugar nobre. Um tempo em que um bebê não entrava em contato com a imagem já no berçário. Panorama que o crítico André Setaro traduziu no artigo “O Cinema Perdeu a sua Magia”, publicado no Volume 3 do Escritos Sobre Cinema:

“A magia, no entanto, das imagens em movimento foi se perdendo por causa da ‘vulgarização’ da própria imagem, que, antes restrita à sala escura de uma casa de espetáculos, hoje está ao alcance de qualquer um graças ao progresso tecnológico. O homem que nasce nos dias de hoje nasce vendo imagens”.

Mais do que saudade daquele cinema, o que O Artista parece estar provocando na indústria norte-americana é uma saudade do tempo em que o cinema estava no centro. Saudades de quando era mais simples chegar ao espectador, de quando não havia a concorrência de outras formas de entretenimento. E por que não saudades também de quando Hollywood era sinônimo de Zukor, Samuel Goldwyn, William Fox, Carol Laemmle, não de conglomerados chefiados por quem raramente enxerga o que há de arte no cinema.

Seja apenas pelos motivos acima ou não, O Artista é um filme que provoca saudades em uma indústria que em muito pouco se parece com aquele período que o longa retrata.

O prazer de matar a saudade

Me parece difícil haver um diálogo forte do filme com quem não cultiva um mínimo de cinefilia. Senão, corre-se o risco de O Artista conversar apenas pela sua fatia mais pobre – o enredo de amor do ídolo mudo George Valentin (Jean Dujardin) e a musa do cinema falado Peppy Miller (Bérénice Bejo).

O prazer desse filme vem principalmente da prosa a que ele se propõe com uma dezena de outros filmes, sejam os do período mudou ou posterior. É possível enxergar nele uma citação explícita ao enredo de Nasce uma Estrela – um profissional em decadência abre espaço para outro em ascensão.

É divertido também perceber que George Valentin pode ser lido como uma apropriação de John Gilbert (o ídolo mudo de voz fina que não sobreviveu ao cinema falado) com o charme irresistível de Rololfo Valentino. E como não rir quando a personagem tristonha diz “I want to be alone!”, a frase que Greta Garbo diz, com aquele jeito particular de pronunciar o “w”, em Grand Hotel (1932)? Ou como deixar passar batido o nome do estúdio onde trabalham George e Peppy, Kinograph, que poderia facilmente ser uma citação à Biograph de D.W. Grifith e Florencce Lawrence ou à Vitagraph de Florence Turner?

Especialmente do diálogo desse filme com outros filmes que se dá o maior vigor da experiência de assistir a O Artista. Neste filme-evento, o enredo se estrutura nas gags, a emoção nas músicas e o gozo estético no diálogo com o próprio cinema, sejam nas citações ou como Michel Hazanavicius filma, se apropriando de convenções dos anos 30, mas tomando algumas liberdades que colocariam seu estilo de direção a bater um papo com a modernidade.

Filme de amor (ou quando O Artista deixa de ser grande)

Contudo, O Artista tem maneirismos que, passado o torpor pós-sessão, ficam maiores e mais irritantes, derrubando o prazer da experiência do filme.

Um deles é a manipulação explícita para conquistar o carisma do espectador. Por todo o filme, George está acompanhado de seu cachorro de estimação. O bichinho passa pelos momentos de glória e esquecimento de seu dono, mas jamais deixa de ser fiel.

Conforme o filme vai tomando, do meio para o final, rumos diversos que não mais o diálogo com o próprio cinema, o cachorro-personagem cresce até chegar na sequência mais apelativa, quando corre para salvar seu dono? Hmmm, parece aqueles filmes do final dos anos 1980, início dos 90, exibido e reexibido na Sessão da Tarde. É golpe baixo, e isso não pode deixar de ser dito. Nesses momentos, O Artista vira meio Lassie, meio Marley & Eu.

Outro golpe baixo que o favoritíssimo a dominar o Oscar em 26 de fevereiro aplica é tirar o enredo romântico do status de subtrama para o centro do filme. Claro que é preciso ter o coração de pedra para não ficar com um sorrisinho no canto do rosto com os desencontros dos carismáticos Valentin e Bérénice. Porém, quando deixa de priorizar o diálogo com o cinema, O Artista torna-se apenas mais um filme de amor – só que mudo e em preto e branco.

Do meio para o final, o filme tem uma queda de qualidade, seja no enredo, seja na criatividade de Hazanavicius em enquadrar e narrar a história. Basta comparar o capricho de cenas como a da fila do cinema ou a do encontro na escadaria com a parte final, seja a do incêndio – basta ver a cena da fila do cinema ou a da escadaria e comprar com o restante do filme, apenas mediano.

Quanto do prazer da experiência de assistir a O Artista e da emoção que o filme provoca permanece nos dias seguintes à sessão? O encantamento do instante desdobra-se em permanência pelas próximas semanas? O Artista dá conta mesmo de segurar esse status de filme que já entrou para a história do cinema?

Minha experiência estética com ele me diz que, mesmo sendo um filme-evento, não é essa obra-prima do cinema que muitos querem. Basta ver o que Limite fez em 1931, oitenta anos antes de O Artista, para perceber isso. Ou The General (1926), Luzes da Cidade (1931), Nosferatu (1922), Intolerância (1917), O Gabinete do Dr. Caligari (1920) …

E em se tratando de filmes encantadores, sinto que Meia-noite em Paris, de Woody Allen, permanece mais do que o filme de Hazanivicius.

O que O Artista de fato é poderia ser resumido numa palavra: interessante. Interessante por permitir um diálogo com o desenvolvimento tecnológico atual (seja da passagem da película ao digital ou a dominação do 3D) ao falar de um momento revolucionário de tecnologia (passagem do cinema mudo ao falado). Interessante também porque é um contraste assisti-lo num momento de crescimento exponencial da mediocrização da narrativa cinematográfico.

Interessante porque, quem sabe, pode instigar espectadores a conhecerem verdadeiras obras-primas do cinema mudo. E interessante simplesmente por existir.

Heitor Augusto

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br