Ano VII

Delírio de Amor

quarta-feira jan 4, 2012

Delírio de Amor (The Music Lovers, 1970), de Ken Russell

Na parte final de Mulheres Apaixonadas, uma sequência traz Gudrun e um amante gay evocando a trágica vida do compositor Piotr Tchaikovsky, homossexual, e sua mulher, Nina. A cena (em um estilo camp uma nota acima do resto do filme) não está ali à toa: preparava terreno para o trabalho seguinte de Russell, Delírio de Amor, que narra justamente a vida do compositor russo. O quarto longa do diretor foi lançado um ano após Mulheres Apaixonadas e se escora sobre a incapacidade do protagonista (vivido por Richard Chamberlain) de lidar com a própria homossexualidade, o que o leva à infelicidade. Ficam evidentes logo no início as diferenças entre Tchaikovsky e o herói atordoado de Mulheres Apaixonadas: Rupert era um inconformista, que achava que deveria ser possível uma nova possibilidade de amar; Tchaikovsky é pura resignação, que se entrega à danação por não poder seguir as regras convencionais do amor.

Russell sabia que estava lidando com uma vertente bem mais simplificada e linear de um dos temas de Mulheres Apaixonadas e talvez por isso tenha compensado esse estreitamento no conteúdo no rebuscamento visual (e sonoro), que em Delírio é bem maior. Tudo no filme é exagerado: atuações, cenários, cortes, emprego do zoom (in e out), movimentos de câmera, imagens deformadas – não há espaço para a discrição.

Essa estética da opulência fez com que muitos dos admiradores de seu filme anterior se afastassem de Russell, que passou a ser considerado um irresponsável, criador de um formalismo muitas vezes gratuito e desnecessário. Criticou-se também o fato de Russell trazer uma falsificação de trechos da vida de Tchaikovsky – aliás, o cineasta foi muito repreendido ao longo da carreira por exagerar fatos e inventar descaradamente situações que jamais fizeram partes das historias de seus biografados (que incluem Strauss, Mahler, Liszt e muitos outros, principalmente músicos).

Mas denota ingenuidade (ou má vontade) achar que por algum momento a intenção do diretor era mostrar uma representação fiel e factual da vida de quem quer que fosse (Russell também não o fazia sequer em seus criativos e admirados documentários para a TV inglesa, nos anos 60). A maior contribuição de Russell para o cinema – e que quase não se leu nos obituários de novembro passado – está na maneira inovadora como abordou a recriação biográfica nas telas. Para ele, a cinebiografia é uma grande estilização do que teria sido a vida da pessoa retratada. Seu cinema tem paralelos com o trabalho dos cartunistas: ele cria caricaturas de seus biografados e de situações de sua vida. Essa caricaturização nada tem de desrespeitosa: ao parodiar os dramas e paixões de seus personagens por via do exagero, joga na nossa cara o quanto somos ridículos por levarmos nossas existências a sério demais e propõe que a melhor forma de retratá-las na arte é pelo humor e o autodeboche. Por incrível que pareça, Russell foi um grande humanista, sensível como poucos às inquietações, fragilidades e imperfeições humanas.

Russell apropriava-se das trajetórias dos outros para embebedá-las com suas próprias obsessões, fazendo um misto de pastiche da biografia alheia com uma obra extremamente pessoal. Para o bem e para o mal, ao final de Delírio de Amor, o espectador não sabe praticamente nada sobre Tchaikovsky, mas sabe praticamente tudo sobre Ken Russell.

Bruno Ghetti

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