Ano VII

As Canções

sexta-feira dez 16, 2011

As Canções (2011), de Eduardo Coutinho

O cinema de Eduardo Coutinho é todo baseado em truques. Há os truques usados para pegar os críticos pelo pescoço, aproveitando-se da inclinação humanista e intelectual de muitos deles (mostrar e dar voz a pessoas simples, brincar com as noções de representação, dosar sua intromissão em cada entrevista). E há, também, os truques usados para fazer as pessoas retratadas renderem mais dramaturgicamente (pesquisar previamente a história de cada um, conhecer os pontos frágeis dessas pessoas, apelar para algum trauma do passado). A soma desses dois truques frequentemente resvala na chantagem sentimental, e algumas vezes mergulha seus filmes no sentimentalismo mais simplório. Como quando um entrevistado é induzido ao choro por Coutinho, e a câmera explora esse choro até o limite do insuportável (leiam: do aceno escancarado para críticos humanistas). Mizoguchi, e alguns outros grandes cineastas, se afastava do rosto do ator quando este demonstrava alguma emoção forte, quando não encurtava os planos para evitar a chantagem com o espectador. Coutinho faz o inverso. É da cultura latina explorar os sentimentos. Vários artistas fazem isso muito bem (é sempre bom lembrar do inacreditável Quando o Amor é Cruel, de Comencini, nessas horas). O problema é que num documentário essa exploração tende a incomodar, ainda mais quando é exagerada e quando o documentário é centrado em entrevistas. E Coutinho força, sim, ao contrário do que seus inúmeros fãs míopes enxergam.

Um fã míope costuma relevar os problemas que percebe nos filmes de um ídolo. É o autorismo levado às últimas consequências. Eu mesmo posso sofrer, sem saber, tal miopia (e de fato lembro de ter sido míope em alguns momentos). Convém, portanto, ficar de olho nesses truques. Não é a primeira vez que Coutinho usa e abusa deles. Ele percebe que sempre funcionam, mesmo quando mal ajambrados, então não vê necessidade de abandoná-los. Uma pequena alteração aqui, outra ali, e vai embora. Não por acaso, seus dois filmes mais fortes nos últimos anos têm as mudanças mais significativas, seja por acidente (O Fim e o Princípio), seja por estratégia (Moscou).

No caso de As Canções, pessoas cantam (geralmente mal, o que costuma divertir as plateias), canções que foram importantes em suas vidas. Não há espaço, aqui, para os melômanos, nem para os fãs de música estrangeira. Coutinho faz novamente demagogia: quer mostrar a gente humilde, gente como a gente. Não está interessado no amor pela música, mas no que a música traz de sentimentos que sejam captados pela câmera. Nenhum problema com isso, a priori, se não fosse uma estratégia usada em demasia, tanto por ele quanto por seus inúmeros imitadores. O que é incompreensível, pelo menos para mim, é a opção de terminar justamente com a pessoa mais aparentemente culta entre todas as entrevistadas. Sai o samba ou o Roberto Carlos popular, entra o Chico Buarque e o Tom Jobim com “Retrato em Branco e Preto”, canção intelectualizada. É como se ele tivesse lembrado que faz filme também para burgueses que cheiram shopping center e quisesse piscar para eles. Não me parece uma boa estratégia essa mudança repentina de foco.

O filme pode ser agradável para quem consegue esquecer os truques. Afinal, ver tantas pessoas se desnudando na frente de uma câmera costuma fazer bem para quem vive (e por isso, obviamente, tem problemas aos montes). Pode ser também uma experiência de imersão no mais profundo tédio. Seja como for, Coutinho finalmente completou sua metamorfose. Transformou-se numa versão cinematográfica de Roberto Carlos. Infelizmente não é o dos anos 1970, das baladas românticas e dos souls contagiantes, mas o dos anos 1980, do apelo fácil e preguiçoso à compaixão dos ingênuos.

Sérgio Alpendre

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