Ano VII

Ford, Fuller, Zapruder…

sábado jul 21, 2018

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Ford, Fuller, Zapruder e o caminho à Nova Hollywood

Por Rafael Dornellas

 I’ve seen the old man sitting’ ’round

The courthouse square back home in town

Talkin’ about the big war back in 1943

Saying’ how much good it’s done

Medals gleaming’ in the sun

Cussing’ at my long hair

And my talk of being’ free

(…)

And, old man, I know what you’ve seen

But yours is not the only dream

I have to believe in something more than yesterday

Let it die just like the past

I believe there’s hope at last

Old man, did you ever have to pray

Old man, can you show me the way

David Allan Coe, 1974

Quando Abraham Zapruder, cinegrafista amador residente em Dallas (EUA), pegou sua câmera caseira Super 8 e saiu de casa para registrar a passagem do então presidente norte-americano John F. Kennedy por sua cidade em 22 de novembro de 1963, jamais imaginaria que registraria o assassinato brutal do presidente; muito menos que aqueles exatos 26.6 segundos registrados em película seriam uma das obras audiovisuais mais definitivas e importantes de sua década, auxiliando a modelar e definir os rumos da já abalada indústria hollywoodiana.

A década de 1960 serviu de confirmação e assentamento da ponte para a Nova Hollywood já iniciada no pós-guerra. O que se viu nos anos que se seguiram, mais precisamente no fim dos anos 1950 e década de 1960, foi uma geração de cineastas que se posicionavam em uma espécie de meio do caminho na indústria, realizando filmes em que uma proposta de dissolução das fronteiras entre bem e mal, um adensamento de temas caros aos jovens da época, um embrutecimento das forças dramáticas internas do plano e um apreço por personagens cada vez mais ambíguos apontavam para constantes curto circuitos na estética industrial clássica, mas que se alinhavam ao mesmo tempo com procedimentos estéticos e de produção dos grandes estúdios nas décadas de 1930 e 1940 do século XX.

Cineastas como Samuel Fuller, Otto Preminger, Robert Aldrich, Elia Kazan, Nicholas Ray, Antony Mann e John Cassavetes se depararam com uma indústria em crise, cuja máquina constantemente alimentada desde os anos 1920, e em pleno funcionamento de produção, começava a dar sinais de desgaste. Seus filmes mais significativos do fim da década de 1950 e 1960 serão, por fim, a evidência sintomática de que algo mudou, de que já não seria possível realizar nos mesmos moldes das décadas anteriores e que a transformação progressiva daquela sociedade tinha consequências diretas não somente nos temas tratados nos filmes, mas também em sua forma, já confrontando códigos e procedimentos até então repetidos com sucesso e exaustão.

O público então irá se deparar com um endurecimento da encenação, com um início de desorientação na transparência classicista do drama, da narrativa, dos encadeamentos e concatenações de fatos sucedendo na progressão das histórias narradas. O véu perfeitamente cristalino da tela começa a ser descolado e a imagem mais opaca, mais nebulosa e contraditória começa a tomar o lugar. A mudança no espectador era um reflexo direto da sociedade: que reconhece pela primeira vez em sua história o papel do jovem no mundo, seus conflitos e suas questões; que não possui a inocência de outrora e que consegue reconhecer nos filmes um mundo em cuja reorganização das coisas não necessariamente desemboca para sua ordem maniqueísta mas evidencia a contradição interna das personagens, não nos oferecendo todas as respostas.

Não somente os jovens diretores irão refletir tais estruturas abaladas. Veteranos como John Ford e Howard Hawks, por exemplo, realizarão, entre o fim dos anos 50 e década de 60, filmes tardios, nos quais o que está em jogo passa ao largo de suas produções de décadas anteriores. John Ford após realizar Rastros de ódio em 1956 (talvez sua obra que mais ecoou nas décadas posteriores) realizaria westerns crepusculares como O Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Valance) em 1962 e Crepúsculo de uma Raça (Cheyenne Autumn) em 1964. Samuel Fuller, que iniciaria sua carreira dirigindo longas metragens em 1949 com o western Eu Matei Jesse James (I Shot Jesse James) realizaria Renegando o meu Sangue (Run of the Arrow. 1957), reposicionando um olhar sobre a Guerra de Secessão dos EUA. Howard Hawks, por sua vez, em 1959, realizaria Onde Começa o Inferno (Rio Bravo) e voltaria a explorar formalmente durante toda a década de 1960 procedimentos que se inseriam com mais força no western de 1959.

“Let’s go home Debbie”: o assombro dos mitos de formação

Rastros de Ódio (1956) se inicia com Ethan Edwards, personagem interpretado por John Wayne, retornando à casa do irmão. O filme nos localiza no tempo e no espaço com uma cartela: Texas, 1868. Então, em seu primeiro plano, a câmera, num movimento, sai da casa e reenquadra a varanda com o personagem de Wayne à cavalo ao fundo. Logo nos primeiros minutos de filme Ford revelará, pouco a pouco, que Ethan Edwards é um ex-combatente da Guerra Civil pelos estados Confederados do sul dos recém formados Estados Unidos da América. A Guerra Civil terminara em 1865. Três anos se passaram sem que se soubesse do paradeiro de Edwards. O que esse homem fez e onde esteve durante esses três anos será uma zona cinzenta que nos acompanhará durante todo o filme. Saberemos porém que ele não esteve presente na rendição dos soldados confederados e que carrega consigo uma quantidade relativamente grande de moedas de ouro recém fabricadas. Os primeiros 15 minutos de filme servirão para a apresentação das personagens e para se erguer em torno de Ethan Edwards todo um universo de questionamentos e contradições que Ford buscará alimentar através do filme em sua progressão dramática. Edwards não constituiu família, tendo apenas seu irmão Aaron, sua cunhada Martha e seus sobrinhos Lucy, Debbie e Martin Pawley (um mestiço com sangue indígena). Ford pontua com pequenos gestos as relações que se dão em torno do personagem de Wayne: sua relação difícil com o irmão e mais próxima com Martha, o conflito constante entre ele e o enteado Martin (o caráter miscigenado do sobrinho será sempre lembrado por Edwards, que não o aceita como membro da família).

Em torno de meia hora de filme a crise se estabelece: a família de Wayne é dizimada por uma tribo de comanches liderada pelo chefe Scar; sua sobrinha Debbie é a única que escapa com vida. Edwards e Martin partem então em uma jornada de resgate que levará cinco anos para ser finalizada.

Ford, então, realizará uma espécie de jornada interna daquele homem ferido e repleto de idiossincrasias em uma paisagem não mais representante da pureza dos ambientes abertos e limpos do western clássico. A paisagem muitas vezes é fria, gelada, e nosso mergulho na transparência dramática será repelido pelas zonas de sombra que orbitam Edwards. John Ford está muito mais interessado no pano de fundo que percorre sua narrativa, nos subtextos, no caráter de formação daquela terra – como quando em determinado momento Edwards está na residência dos Jorgensen (família próxima aos protagonistas que servirá de refúgio e de novo lar para a raptada Debbie) e a velha matriarca repentinamente em uma fala repleta de melancolia diz que “este país matou meu filho”, “o problema é que somos texicans[1]”.

Rastros de Ódio se desenvolve através da construção dos mitos como formação de uma nação, no caráter miscigenado daquele povo, no outro como parte dessa construção. E aqui reside a consciência de Ford em se filmar o outro. O diretor se preocupa em colocar à mesa essa discussão através de um personagem sulista ferido e recém derrotado na guerra civil e que enfrenta diretamente a única família que lhe restou (um garoto que possui sangue indígena e uma sobrinha assimilada pela tribo comanche). Scar, o chefe comanche vilão procurado por cinco anos pela dupla protagonista, será sempre filmado de forma a ressaltar a alteridade, a consciência do diretor em filmar o outro que não compreende por completo – quase sempre se utilizando de contra-plongée, da câmera de baixo para cima, com a música pontuando intensamente.

O duelo final, portanto, não se dará à maneira natural e frente à câmera. O duelo final é interno em Edwards. A crise gira em torno da possibilidade dele matar sua sobrinha. Para ele, Debbie, em função dos muitos anos passados entre os Comanches, não possui mais qualquer resquício de sua vida junto aos brancos. Ela é indígena e ele não pensa duas vezes em apontar uma arma em sua direção no primeiro reencontro de ambos. Martin a salva. Não vemos Scar sendo alvejado por tiros de espingarda de Pawley. O que vemos, porém, é Ethan escalpelando o índio e cavalgando com aquele coro cabeludo rumo à sua sobrinha agora sem a proteção do meio-irmão. A resolução se dá em uma gruta, filmada de dentro para fora da mesma maneira com que Ford inicia e termina o filme, em uma espécie de ritual de renascimento. Edwards ergue Debbie em uma espécie de expurgo e a carrega em seus braços: “vamos para casa Debbie” é uma das últimas frases ditas nos filme.

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Ao final, a câmera que agora realiza um movimento de afastamento, entrando na residência dos Jorgensen, nos mostra uma Debbie Edwards com uma expressão de medo no rosto, de não pertencimento àquele universo, de um mundo cujas cicatrizes as fazem lembrar de uma família dizimada e uma educação na tribo comanche de Scar. Por fim, todos vão retornando à suas vidas cotidianas e entrando na casa enquanto Ford mantém sua câmera na figura de Ethan Edwards, observando tudo e sendo deixado por todos. Ele vira as costas e caminha sem rumo para a vastidão do oeste americano. Não sabemos para onde ele vai pois logo que John Wayne reinicia sua caminhada a porta se fecha encerrando o filme. Os ecos iniciais se mantém. Os mitos, tão importantes para a construção da filmografia de Ford, haviam sido esgotados (e seriam sepultados de vez em O Homem que Matou o Facínora); a mineralidade da paisagem, assim como a monumentalização do plano, em que se veem personagens pequenos e insignificantes frente àquele ambiente, traduziam uma impossibilidade de penetração pura na transparência do drama.

Rastros de Ódio, como já exposto acima, seguirá como um dos filmes chave, uma obra a ser constantemente perseguida nos anos posteriores, uma espécie de obsessão a ser revisitada pelas novas gerações em filmes como Taxi Driver (1976, de Martin Scorsese), Guerra nas Estrelas (1977, de George Lucas) e Hardcore – no Submundo do Sexo (1979, de Paul Schrader) – em que George C. Scott interpreta um pai de família tradicional protestante que parte em uma jornada descendente em busca de sua filha aliciada e inserida na indústria pornô –, apenas para citarmos alguns exemplos.

“A rendição não foi a morte do Sul, mas sim o nascimento dos Estados Unidos”

Renegando o meu Sangue (Run of the Arrow, 1957), de Samuel Fuller, se inicia com um soldado confederado disparando a última bala da Guerra de Secessão e testemunhando a rendição do general sulista Robert E. Lee ao general do norte Ulysses S. Grant. Ao retornar derrotado para sua casa, o soldado O ‘Meara nega a União e ruma em direção dos territórios profundos do Oeste americano para se integrar à tribo indígena Sioux. Ele intermediará a relação entre o exército da União e sua tribo em uma expedição dedicada a construir um forte naquela região.

Muito acima de qualquer tomada de partido, o filme de Fuller é constantemente pontuado por uma dureza melancólica de registro da formação de uma nação ferida, recém saída de uma guerra civil. Mesma preocupação que John Ford sempre teve e também retratada à sua maneira em Rastros de ódio. Tanto Ethan Edwards quanto O ‘Meara são sulistas derrotados e indignados, porém Fuller opta por filmar o espaço e o momento que em Ford é nebuloso e não revelado, e busca nessa escolha uma dureza de registro ao inserir-se no oeste longínquo e selvagem.

O’ Meara, ao final, aceita sua “condição” e sua pátria após negar-se a assistir o escalpelamento de um norte-americano e mata-lo com um tiro na cabeça. Fuller filma a sequência em primeiros planos intensos. É como se os procedimentos formais, em Fuller, começassem a ser invadidos por uma torrente violenta, como se de alguma maneira não pudessem mais conter as novas abordagens que se inseriam e espalhavam por todo o cenário de Hollywood. A “corrida da flecha” (título original do filme) é arquitetada através de uma sucessão de cortes secos em que vemos os pés descalços de O’ Meara e de seu parceiro Sioux se contrapondo com os pés calçados da tribo que os desafiou.

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Há um momento crucial no filme que demonstra e traz à luz a discussão central desejada pelo diretor. O diálogo travado entre um O’ Meara já estabelecido como membro da tribo Sioux e um capitão da União. Nesse diálogo, Fuller expõe os sentimentos de ambos em torno daquela nação em formação. Após serem colocadas questões sobre a Klu Klux Klan (“homens brancos vestindo capuz e aterrorizando famílias. É isso que chama de liberdade?”; “É sempre o outro, nunca é com a gente” expõe o soldado nortista), o capitão confronta O’ Meara e diz: “a rendição não foi a morte do Sul, mas sim o nascimento dos Estados Unidos”. A frase voltará em off no final do filme seguida de uma cartela: “o fim dessa história só poderá ser escrito por vocês”, em um movimento de reconstrução e revisitação de mitos iniciados por Griffith, explorados ao extremo por Ford, e retomados com maior distanciamento por Fuller e pelas gerações seguintes (Eastwood, Cimino, Milius).

O que pode ser percebido, na obra do diretor, é que há um início de desordem entre o bem e o mal, o certo e o errado, o selvagem e o civilizado. É só lembrarmos dos minutos iniciais de Renegando o meu sangue, que permanecem e repercutem durante todo o filme, em que O’ Meara é afrontado por sua mãe em um diálogo desesperado e dilacerador acerca do fim da guerra. O jovem derrotado diz aos prantos: “Qual é seu problema, mãe? Qual é o problema de todos vocês? Eles vieram e tomaram nossa terra! Nos caçaram quando não tínhamos pernas! Comeram nossa comida quando morríamos de fome! Onde está seu orgulho?” A velha senhora durante toda a cena permanece altiva, olhando melancolicamente para o horizonte enquanto seu filho berra no fundo do quadro. O plano é fixo e todos seus poucos cortes ocorrem no eixo, aproximando-se no mesmo ângulo dos rostos dos personagens. A velha senhora responde que “haverá ianques em todos os lugares e você deverá aprender a conviver com eles”. O jovem então revela que rumará ao oeste profundo para viver junto dos “selvagens”. Sua mãe diz, imóvel, com o olhar fixo para cima: “não há lugar onde se esconder para o que te atormenta, filho. Estamos todos sob uma mesma bandeira agora”. Após ele afirmar que se enforcará antes de reconhecer a nova bandeira, sua mãe, impassível, encerra o diálogo: “talvez um pescoço quebrado é a melhor resposta para o que te atormenta”. Fuller constrói essa cena como se erguesse um mito, o encarando frontalmente como quem observa um processo histórico consciente de sua importância e de seu peso, como se não houvesse outra maneira de enxergar aquela situação.

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É cristalina a linha hereditária que pode ser traçada se iniciando em D. W. Griffith, passando por John Ford e Raoul Walsh, por Samuel Fuller e se reconstituindo em Clint Eastwood, e John Milius; modificando-se e tomando novas formas e maneiras de se olhar para a história a cada nova geração, indissociável do tempo em que se filmava. O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation, 1915) filma a Guerra de Secessão, recria suas batalhas e seu desenvolvimento, se firma como um documento histórico de sua época em que tanto os desenvolvimentos dos conflitos quanto o assassinato do presidente Lincoln e a criação da Klu Klux Klan são registrados e dramatizados pelo diretor. Rastros de Ódio filma o resultado, interioriza o drama de formação na personagem vivida por John Wayne e opta pela nebulosidade do momento posterior, por não revelar a Guerra em si nem o que se deu nos três anos que se seguiram do conflito. Renegando o meu sangue filma a ferida aberta que jorra sangue antes de ser cicatrizada.

Fica claro uma impossibilidade de se retratar o mundo filmado com certa inocência ou maniqueísmo a partir de determinado período. Já não era possível o mergulho total no drama sem que emergissem certas dúvidas, questionamentos retratos das mudanças de comportamento observadas na sociedade. Já não era possível, portanto, filmar No Tempo das Diligências (1939, John Ford) ou Rio Vermelho (1945, Howard Hawks). O que também ainda não era possível, era uma total adesão à quebra e ao desordenamento da tradição. O que se viu, no fim da década de 50 e 60, foi um primeiro indício; um primeiro sinal de alerta e cansaço daquela locomotiva incessante que era Hollywood até então, uma fratura interpretativa naquele grande bloco imponente e inabalável dos grandes estúdios, que teve como consequência filmes como os citados acima e muitos outros que começavam a desafiar de alguma forma os costumes já não mais imperantes daquele tempo.

JFK e a América estilhaçada

Se o fim dos anos 1950 começaram a tatear novos caminhos dentro da indústria, novos rumos estéticos e novas abordagens a temas cada vez mais recorrentes dentro de Hollywood, dando vazão a impulsos jovens e a necessidade de se confrontar com a sociedade e suas mudanças, os anos 1960 terminaram por preparar o terreno por completo para aquela que seria a geração da modernidade assimilada, das abordagens mais diretas e do confronto com a história do cinema surgindo dentro dos filmes de jovens realizadores que acabavam de sair das universidades e dos cursos de cinema.

Esse período foi de grande agitação social, acontecimentos importantes que geraram uma profunda reorganização e movimentação na sociedade norte-americana. Essa década viu a confirmação da juventude como grupo social presente no mundo, viu o desencadeamento das crises da Guerra Fria, a revolta com a tragédia da Guerra do Vietnã, a força do rock and roll atingindo suas manifestações máximas com a invasão britânica dos Beatles e dos Rolling Stones, a mudança de comportamento com o sonho hippie, a revolução sexual, a ilusão do festival de Woodstock e a perda da inocência no festival de Altamont[5], a ascensão de movimentos sociais – as mulheres começando a reivindicar mais espaço na sociedade, e o movimento negro eclodindo ferozmente com os Panteras Negras – viu a esperança surgir e se esvair com os assassinatos de Malcolm X e Martin Luther King, e, finalmente, presenciou o assassinato brutal do presidente John F. Kennedy, em 1963, e do senador Robert Kennedy, em 1968 – que teve impacto direto nos filmes realizados à época.

Então voltamos ao cinema, a Hollywood e a Abraham Zapruder. Como ficaria Hollywood depois de um década como a de 60? Aquela máquina imponente que já havia demonstrado sinais de mal funcionamento finalmente entrava em colapso. Grandes produções como Cleópatra (1963), de Joseph L. Mankiewicz, fracassavam nas bilheterias e filmes “menores” e mais baratos como A Primeira Noite de um Homem (1967), de Mike Nichols, e Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas (1967), de Arthur Penn, eram sucesso e obtinham adesão em sua recepção crítica. Se na década de 50 já não era possível filmar nos exatos moldes dos grandes estúdios da era clássica e os filmes começavam a esboçar um certo desamparo e uma certa busca por territórios mais inóspitos, nos anos sessenta a impossibilidade se torna completa. A inocência dos primeiros anos se perdeu e o que se fez presente foram as imagens de soldados sendo assassinados no Vietnã transmitidas pela televisão, do jovem negro Meredith Hunter sendo morto a facadas pelos Hells Angels durante o show dos Rolling Stones em Altamont, do presidente Kennedy tendo sua cabeça aberta por uma bala de fuzil em sua passagem por Dallas e de seu irmão Robert Kennedy sendo morto a tiros em 1968.

O ponto em comum é o registro fílmico dessas imagens, fator determinante para se inserir de uma vez por todas na mente da sociedade e perpetuar frontalmente um mal-estar que resultará, dentre outras coisas, nos duros anos 1970.

Antes mesmo da liberação do pequeno filme de Zapruder, surgem nos Estados Unidos, em meio à paranoia instaurada e as agitações da época, os analistas obsessivos pela imagem, os buffs[6]. Antes de sua liberação ao público, o Zapruder film havia circulado clandestinamente em sessões de cineclubes e surgiu aquilo que seria um personagem recorrente no cinema dos anos seguintes: sujeitos que se debruçam sobre uma imagem (uma fotografia, um filme, um registro sonoro, uma mulher) e a analisa numa espécie de obsessão. Nascerão, então, inúmeras teorias da conspiração envolvendo o assassinato do presidente e o governo norte americano. Muitos diriam que o material fora forjado e censurado, que faltavam frames da película do pequeno filme, que a explicação oficial do ocorrido e da prisão de Lee Harvey Oswald era parte de um grande conluio – convém lembrar que o assassinato de Oswald também foi registrado pelas câmeras.

Um importante dado, que se une aos ocorridos da década de 60 discutidos acima, é a presença de filmes europeus nos Estados Unidos. A Nouvelle Vague francesa servirá de influência direta para a nova fase que se desenhava na indústria hollywoodiana. É possível observar uma filiação de filmes de Arthur Penn, como Mickey One (Mickey One, 1965) à filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut. Outro marco determinante é Blow Up – depois daquele beijo (Blow Up, 1966, de Michelangelo Antonioni), e sua ampla adesão à época. O filme irá reforçar esse aspecto da paranoia em torno da imagem, dela como objeto de estudo aprofundado, em que um fotógrafo pensa ter testemunhado um assassinato com sua câmera e amplia suas imagens penetrando naquele mistério e se perdendo em sua obsessão. Muitos são os filmes da Nova Hollywood que retrabalharão esse tema: podemos citar diretamente Um tiro na noite (Blow Out, 1981, de Brian De Palma) e A conversação (The Conversation, 1974, de Francis Ford Coppola), retrabalhando as mesmas obsessões em torno do som. Em Greetings (1968), por exemplo, Brian De Palma insere na narrativa um jovem obcecado pelo Zapruder Film e por suas teorias de conspiração. Trágica obsessão (Obsession, 1976), também de Brian De Palma, irá estabelecer um diálogo direto com Um corpo que cai (Vertigo, 1958, de Alfred Hitchcock), filme matricial que completará, junto com Zapruder Film, Rastros de ódio, e Blow Up, a base referencial de grande parte da geração que irá compor a Nova Hollywood e as décadas seguintes.

Ao final da década de 1960, portanto, era claro que aquilo que restava de ilusão de um american way of life e de um sonho hippie psicodélico e colorido havia sido brutalmente interrompido. O sonho acabou era a frase do momento. O assassinato de Robert Kennedy e a eleição de Nixon à presidência (ambos em 1968) nada mais eram que um curto circuito final, uma última catálise à derrocada quase definitiva de uma maneira de se ver o mundo e o início de uma década em que um desconforto e uma melancolia imperariam e trariam de dentro, das entranhas das cicatrizes mais profundas deixadas por esse sonho interrompido, a violência e a predileção por personagens marginais, desajustados, por narrativas não lineares, por abordagens mais diretas e mais duras, por uma abstração e uma opacidade no trato com a imagem, pela noite e pela moral ambígua, pela cidade como ambiente caótico e abjeto. O mundo visível, por fim, se inseria nos filmes cada vez mais opaco, cujas zonas cinzentas faziam-se sentir e tomavam de assalto as telas, em uma representação onde as aparências não eram exatamente o que pareciam ser, em que a moral dava lugar ao caráter corrompido da alma humana, em que as grandes corporações são completamente corruptas e o problema não está mais presente somente em indivíduos: ele deixa o individual e parte para uma amostragem na qual não é mais possível apontar onde exatamente se localiza o mal, pois o mesmo está em todos os lugares.

O que resta portanto é lidar diretamente com essa história e enfrenta-la de maneira honesta – como Cimino, Eastwood, Peckinpah, De Palma, Milius. Surgiriam então o que foi convencionalmente chamado de maneirismo: as distorções da limpidez clássica, o rebuscamento, a evidência do aparato em alguns filmes, o aprofundamento na busca pelo segundo grau da imagem, a reestruturação de planos reconhecíveis na história do cinema para irem além e tentarem buscar o que havia por detrás daquela teia transparente e límpida das primeiras décadas do século XX. A resposta direta a John Ford, Howard Hawks, Raoul Walsh, D. W. Griffith, à Nouvelle Vague, à Rastros de ódio, à Blow Up, à Um corpo que cai e ao Zapruder Film, por fim.

 


[1] Termo utilizado para designar habitantes da parte mexicana do estado do Texas, e também moradores da República do Texas, anexada aos Estados Unidos em 1845.

[2] Edwards ergue a sobrinha no início do filme, e cinco anos depois ao final (“let’s go home Debbie”).

[3] Frames de Renegando o meu sangue: no final do filme, O’ Meara não aguenta ver seu compatriota ser escalpelado e o mata.

[4] Frames de Renegando o meu sangue: O ‘Meara confronta sua mãe.

[5] O Festival de Altamont foi um festival de música, que continha dezenas de bandas de rock n roll de sucesso como os Rolling Stones, Grateful Dead e Jefferson Airplane, realizado na costa oeste norte-americana em 06 de Dezembro de 1969, na pista de corridas Altamont (Califórnia). O festival era realizado dentro da lógica da contracultura da época e tinha como objetivo ser um novo Woodstock (o festival de Woodstock havia sido um sucesso e um dos pontos máximos de celebração hippie). Porém o evento foi marcado por diversos acidentes trágicos envolvendo mortes de pessoas na plateia e de violências entre o público e a gangue Hells Angels contratada para cuidar da segurança do evento. O jovem negro Meredith Hunter foi esfaqueado e morto por um dos Hell Angels durante o show dos Rolling Stones após se envolver em uma briga. Sua morte foi filmada, assim como os outros incidentes do festival.

[6] Como foram apelidados os detetives de imagem amadores que se debruçavam sobre o registro no intuito de desvendar o mistério do assassinato de JFK.

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