Ano VII

Guerra do Paraguay

quinta-feira abr 5, 2018

guerra

Notas sobre Guerra do Paraguay – filme autoral do cinema de combate de Luiz Rosemberg Filho

Por Joel Yamaji

A mulher vem do fundo até o soldado que está em primeiro plano, em perfil, à direita do quadro e lhe pergunta: – “Por que os paraguaios eram nossos inimigos? O que foi que eles nos fizeram?” O soldado, hesitante, dá reviravoltas no cérebro para lhe responder: “- Bem, ao certo, com precisão, eu não saberia lhe responder.”

Posicionados no quadro, a luz do sol incide sobre a mulher recortando-a do soldado que fica com o olhar de soslaio, revelando, inesperadamente, um instante de perturbação diante das coisas que ela lhe diz e às quais reage como se diante de uma voz interior, uma voz de sua consciência. A mulher, damo-nos conta, aos poucos, assemelha-se a um desdobramento e a uma projeção dele próprio, como se fosse consciência crítica dos valores que ele segue sem refletir muito bem sobre as razões de porque os segue: tudo se transfere para o plano do mental.

No quadro a seguir, a mulher dirige-se para a câmera, rompendo a quarta parede que a separaria do espectador a quem ela fala: “- Vejam a essência do sacrifício do soldado: a sua fome(…) O mal é viver na necessidade. Mas não há necessidade de se viver na necessidade.” Mais à frente, dirá, ainda sobre o soldado: “- Um ser humano que não sabe viver sem a presença da dor e da humilhação.”

Desde o início, ela, que é atriz de teatro popular também sobrevivente da mesma guerra, trata o soldado como representação: – “- Que figurino é esse seu? Que fantasia é essa?” É a voz que vem para questioná-lo, tentar chamar para os valores da vida, para além do instinto da morte e da destruição que ele traz, antagonista que, pelo discurso indireto livre, materializa a voz do autor, comentador crítico das relações em jogo no filme. Por outro lado, na medida em que se contrapõe ao soldado expondo suas próprias inquietações e posições diante da vida, assume-se, já no segundo ato do filme, como a voz do discurso a partir da qual o outro, o soldado, passa também a ser projeção de uma consciência, no caso, dela: “- Eu sou uma mulher agora é ela quem está em primeiro plano, o soldado, ao fundo, em segundo plano: – “Mas me alegra a ideia de que você simplesmente não existe – diz ela para ele – “é uma versão sem potência de uma imaginação sem essência, enfim, uma personagem sem história própria.”

O mesmo tratamento já se encontra no primeiro ato do filme, aquele em que a personagem do soldado começa propriamente a se definir quando se depara com a primeira das figuras que lhe surgem no caminho: um ferido de guerra, mutilado sobrevivente – ou fantasma – do exército derrotado. A aparição desta figura que abre a cena, em Primeiro Plano, o rosto próximo à câmera, em perfil, enquanto se vê, em segundo plano, nosso soldado se achegar do fundo, similarmente à composição da mise-en-scène nos dois momentos citados, impõe-nos o aspecto fantasmagórico dessa estranha personagem: sua face é como uma massa amorfa, deformada por uma espécie de gaze, uma máscara de tecido transparente como meia de seda que a envolve de modo apertado. Cobrindo a fronte, uma bandagem enorme com ferimento de sangue. Além disso, sua voz soa gutural, com efeito de eco que lhe confere aspecto de irrealidade, vinda de outra dimensão temporal e que soa como a fala de um réptil paleontológico, em um idioma inventado, irreconhecível, feito de sonoridades que imitam dialetos ancestrais de alguma civilização perdida. O espectro nos fala, devidamente traduzido por legendas escritas, de “um país que tentara ainda a realização das utopias, onde se valorizava a vida”, um país onde “a vida era um poema de esperança na humanidade”. Acusará o soldado de ser ele o autor do tiro que lhe deformou o rosto e, aos poucos, se afirmará como uma imagem do passado que volta para lhe contrapor o outro lado da visão ufanista que ele tem de si próprio e de seus feitos na guerra. É como uma imagem projetada da consciência do soldado da qual ele fugirá, acuado, no final da cena, tentando não ver, enquanto a figura se afasta em rodopios, a voz ecoando ao longe, para o fundo do quadro, para deitar-se ao solo, como espírito que regressasse às profundezas da terra. Aqui, novamente, os reflexos se separam e é através da mise-en-scène desenhada no mesmo espaço de realidade, que as duas dimensões distintas, no caso, do soldado e da figura espectral, se revelam como partes de uma mesma entidade.

As personagens, no fundo, são fantasmas, projeções de entidades antagônicas que se contrapõem na tentativa de afirmarem-se enquanto valores e pensamentos: são personagens abstratas, representativas de ideias que se definem e se redefinem de acordo com as circunstâncias em que se manifestam.  A mulher não deixará de questionar o soldado sobre a inutilidade de suas medalhas, de sua fidelidade ilusória a valores e ambições de um poder que o ignora, ele, que é sempre orgulhoso de seus atos. Orgulhoso por ter sido um combatente vitorioso contra os soldados de Solano Lopez. Mas a quem servirá os ganhos de seus feitos? Certamente não a ele, que retorna para casa esfarrapado, sem nada, ao encontro de sua casa e de um mundo que talvez não mais exista, conforme lhe diz a mulher.  O imperador, ao qual serve com lealdade canina, tem ao menos a noção de que ele, esse mísero ser que vive em sua função e extrai daí sua própria razão de ser, existe? Para tal fato, ela tentará lhe chamar a atenção, procurando admoestá-lo da inutilidade de tudo aquilo. O homem vive na guerra, para a guerra e pela guerra, não conseguindo extrair prazer e frenesi de existir senão através do sofrimento, da necessidade. O trabalho, conceito tido como produtivo de acordo com o senso comum, no filme, é professado como “cansaço” – “apenas uma força conservadora necessária à desmobilização do povo” – entendendo-se “povo” – e não “massa” -  como coletividade de indivíduos com autonomia, dignidade e valores próprios.  Ou seja, uma estratégia perversa de aniquilação de todo desejo de afirmação do outro na demarcação do território de sua identidade. O arrogo do direito de subjugar e mandar em nome de uma vaidade e interesses próprios, uma falácia montada e estabelecida pelos donos do poder. Há um contraste visível entre a visão eufórica e orgulhosa que o soldado tem de si mesmo, no nível do maníaco, e a imagem humilhada em seu uniforme esfarrapado, o quepe amarfanhado, o aspecto raquítico do bigode que ostenta sob o nariz quase constante e ridiculamente empinado, o tambor furado. O contraste traduz o sentimento do patético e do ridículo. O filme, no fundo, discute a alienação do homem médio comum, alheio às forças que o manipulam em prol de valores e interesses escusos.

O ar de fantasmagoria na representação é reforçado pela trilha sonora muito rica na criação da atmosfera: há um efeito de eco de modo a que os ruídos reverberem fundo, como se viessem de outra dimensão de tempo ou realidade, criando alusões ao extraordinário, ao fantástico: é noite, ouvem-se uivos de lobo, sons de ramagem movida pelo vento, sininhos chineses (feng shui) que denunciam a presença desse vento. É nessa atmosfera que o soldado encontra, a seguir, em seu trajeto, as duas mulheres que lhe surgem como duas aparições na clareira, envoltas nas sombras da noite, uma delas com uma vela nas mãos, o olhar para o vazio, a outra, sentada, de joelhos, diante do corpo estendido da mãe, agora morta. São como espectros na noite.

A imagem da guerra, também ela, passa-se no plano mental: é construída por via indireta, pelo off de quadro. É evocada pelos sons (trovoadas longínquas, sons das hélices de helicópteros sobrevoando seguido das explosões de bombas - sons anacrônicos, se consideramos que, de acordo com o tempo diegético do filme, tudo deveria se passar no século XIX), pela palavra (através das referências dadas pelas personagens), na própria composição dessas personagens nos quadros, estilhaços sobreviventes, lançados de alguma hecatombe ocorrida, hecatombe referida por elas e através delas, deduzida por nós, desde o primeiro instante em que as vemos, quer nas figuras das três mulheres que surgem da nebulosa em desfoque, arrastando com seus braços uma carroça, como imagem que aos poucos se definisse aos olhos de um sobrevivente, quer no soldadinho que anuncia a vitória em uma guerra da qual mal sabemos, ou do espectro do exército derrotado. Intuímos serem elas sobreviventes que emergem de um mundo pós-apocalíptico. A imagem se expande para além dos limites de seu quadro, multiplica-se. São quadros sínteses. Evita-se o verismo, a caracterização psicológica ou sociológica própria ao naturalismo regionalista da produção dominante em nosso cinema atual. A imagem da guerra, no filme, é o contexto no qual se vive, a ameaça que paira sobre todos e de onde momentaneamente se evadiu, o que propicia um espaço (uma clareira determinada, uma área circunscrita num espaço circular demarcado, ao modo da área ritualística reservada ao palco de um teatro no mundo) e um tempo (dilatado, de interregno) para que as personagens passem ao embate das ideias e questionamentos, no estilo do teatro e do cinema de representação épica (Glauber, Godard, Jean Marie Straub-Danielle Huillet): a natureza primitiva do homem que se esconde por trás das ideologias que dominam o mundo e nossas vidas e que, no filme, manifesta-se através da parábola do regresso do andarilho para casa e seu encontro com figuras pelo caminho. Narrativa de trajeto, de percurso empreendido, a parábola prestando-se a uma reflexão e exposição de uma condição, de um estado de coisas.

O estilo de representação é o épico, de inspiração brechtiniana, de cuja dramaturgia o filme empresta, aliás, a imagem arquetípica da figura feminina a carregar sua carroça tendo a guerra como panorama de fundo (a peça Mãe Coragem, para as novas gerações). Utiliza-se da força plástica das imagens numa estética do choque e da violência (Artaud, Rimbaud, novamente, Glauber, Godard), dos corpos dos atores onde o que importa é sua performance, gestos e movimentos muitas vezes demarcados no campo do mítico e do simbólico.  Brechtinianos, mas nos moldes de Artaud, os atores atuam distanciadamente, expõem o método ao tempo em que o realizam. Trabalham com o “terceiro olho crítico”: compõem e expressam a personagem para a qual emprestam seu corpo e voz, expondo a ideia sobre ela. Alternam-se entre o ponto de vista de dentro e o de fora, o racional e calculado e o instintivo sem aviso prévio. A representação é na vida, no ato do mundo. A câmera capta e escreve as figuras simbólicas no real.

Desta forma, atua-se em si, para si e através de si, tendo o outro como espectro espelhar. Está claro que, no jogo, mais do que tentarem reproduzir atitudes padrões do que seria uma ideia de cotidiano, nos moldes do tipo “imitação da natureza / imitação (das aparências) da vida” tentando convencer o público de que o que é visto é a realidade, aqui, como nos demais filmes de Rosemberg, os atores deixam claro que não são atores a imitar personagens como se de carne e osso, mas antes, expressão de ideias, de forças interiores, míticas, simbólicas, que se referem a uma imagem da personagem, a um sistema de pensamento. O atemporal, a ruptura do lacre da lógica verista nas relações unívocas e lineares de causa e efeito entre os momentos vividos, a dimensão onírica, a atmosfera a revelar dimensões de tempo e natureza distintos como faces de uma mesma entidade, são até aqui construídos através de um cinema de câmera e de mise-en-scène dos atores em espaços demarcados, sem truques, com apelo ao plano-sequência. Um cinema apoiado quase que exclusivamente nos atores, na luz, no uso do som em sua autonomia diante da imagem e, no caso específico, na ausência da cor (a opção pelo branco e preto favorece a recusa do naturalismo em prol do mítico e do simbólico).

É em sua parte final, para onde converge toda a tentativa da mulher em resgatar no soldado sua possível humanidade, que nos deparamos com o impacto derradeiro que, no meu entender, faz com que o filme seja elevado à categoria de poesia pura, dando o salto do microcosmo e do particular (o soldado e as duas mulheres irmãs) para o macrocosmo, o geral, o abranger o mundo e os tempos (as imagens jornalísticas da guerra em tempos atuais, mais especificamente, em sua dominância, as imagens do bombardeio americano sobre Bagdá). E é através de um cinema de montagem que a síntese se coloca: o soldado não sabe ainda que os meios de comunicação evoluíram, que enquanto ele se entretinha em matar e vencer, ao regressar para casa, o mundo mudara. O anacronismo permite que se diga: passou-se quanto tempo desde então? Um tempo imemorial: do século XIX ao XXI, para além do tempo de vida que cabe a um indivíduo, o que acentua o caráter espectral e atemporal das personagens. A possibilidade de sonho, de humanização daquilo que é, por natureza, bruto, revela-se como impossível: o grotesco sempre será o grotesco, o bruto não tem mais esperanças de regeneração, pois sua idiotia e seu instinto naturais prevalecem em uma natureza caracterizada como anômala, pervertida, psicótica, como dado e condição natural, fraqueza de caráter, anemia de espírito. A fusão da valsa de Strauss com cenas da devastação provocada pelas bombas americanas sobre Bagdá, nos dias de hoje, traduzem o que somos capazes de criar de mais belo (a valsa, a música, a arte) e de mais hediondo (a guerra): o prazer pela destruição (cenas dos prédios estilhaçados, crianças sangrando, com ferimentos de bombas, em imagens de arquivo). Montagem por justaposição de nossa grandeza e nossas misérias. A valsa de Strauss orquestra o epílogo, poema bélico para onde as coisas desembocam. É o desenlace da sequência terrível em que, por um momento, havíamos vislumbrado a possibilidade de humanização e redenção da personagem do pequeno soldado: tosco e primitivo nos traços físicos e psicológicos, de imaginação pobre ou nula, lembrando de longe a figura do caipira mas aqui dotado da componente da violência, da agressividade, - “caipira selvagem” – , bruto na ignorância e na força física assentada nos instintos que a razão não desenvolvida é incapaz de compreender e controlar: a música surge, trazida pelo rádio de pilha que acompanha as duas atrizes ao longo da jornada, o soldado inesperadamente, num assomo raro de delicadeza convida a moça a dançar e, juntos, valsam em meio à clareira e à noite. Na dança, conduz a mulher na direção das árvores que se cerram ao fundo e, atrás de uma moita, como se culpasse a si mesmo por ter se permitido o instante de sensibilidade e doçura, súbito, inesperada e traiçoeiramente, espanca a mulher, matando-a a pauladas. No rosto, flagrado num segundo de rastro de luz, a expressão bestial do ódio que se escondia por trás do riso falso. Depois, o ato supremo da vilania, o objetivo final, torpe, de seus atos: matara a moça simplesmente porque ela lhe era o obstáculo para chegar ao objeto final de seu desejo de posse: a irmã, moça virginal e louca, que acaba finalmente por estuprar. Seria insuportável a bestialidade de seus atos dessem-se eles sem o comentário musical do Danúbio azul, de Strauss: a associação por conflito entre a violência das imagens e a leveza e grandiosidade  da música, o mais grotesco e o mais sublime, jogam-nos em meio ao teatro e ao cinema da crueldade que, ao contrário do que se pensa, encontram-se na vida, no mundo, e não nas telas: as imagens de guerra que vemos no final, assim como o episódio brutal narrado em síntese numa manchete jornalística – o estrupo de uma menina por bando de soldados americanos – referem-se a episódios acontecidos, não pertencentes ao reino da fantasia, da ficção, mas ao do jornalístico, do mero registro de nosso cotidiano, da banalidade de nossas existências, onde a realidade crua e nua torna-se imagem, imagem reveladora de nossa natureza.         Para esta culminação em linguagem poética onde a montagem agora prevalece diante do cinema de mise-en-scène, converge o filme estruturado em quadros, em grandes cenas autônomas e inter-independentes, onde a representação dos temas na interpretação polivalente e brechtiniana dos atores  prevalece sobre a ilustração de uma narrativa ou intriga literária. É uma sucessão de quadros, de momentos, em que as personagens se embatem em suas ideias e visões de mundo, é um cinema que se propõe a discutir o mundo contemporâneo, a confrontar as aparências, desmascarar ideologias de opressão, encarar diretamente, sem falsas retóricas, as feridas do mundo e os fatores obscenos que impedem uma sua possível regeneração.

No país, Rosemberg é talvez um dos raros a permanecer leal à paixão pelo cinema enquanto arte e linguagem, captura do imaginário, registro e escritura do homem em seu tempo. Com o cinema, a realidade torna-se uma linguagem. Uma linguagem que se apoia na imagem e som. A imagem que se refere a uma realidade e que, no mundo contemporâneo é, antes de tudo, uma imagem. Guerra do Paraguay reflete sobre a imagem da guerra e utiliza-se do episódio histórico para refletir sobre a natureza bélica do homem confrontada pelo sonho e afirmação da vida defendidos com veemência pela personagem da mulher.

Os filmes brasileiros na atualidade têm a ventura das boas intenções e pretendem abarcar, no geral, temas que se pretendem de importância social. Mas as imagens atrás das quais se escondem carecem de verdade interior para as formulações a que querem se propor. Traduzem fórmulas pré-fixadas, demonstram uma inabilidade e falta de jeito no lidar com temas com os quais não tem intimidade: tentam pela imitação, pela cópia, mas são incapazes de terem a intuição do processo criativo. Por isso a aparência de imagens fracas, sem inspiração poética, de horizontes limitados na visão unívoca, racionalista, sem senso de plasticidade. No fundo, traem a ausência de afetividade, comprometimento  e generosidade no olhar, necessário à construção de uma obra. Com todas as academias hoje em moda no país e no mundo, onde se procura gerar fórmulas na crença de uma tábua de garantia através da repetição, tendemos a ignorar o fato de que arte não se ensina ou se aprende, mas se apreende, e isso tem mais a haver com caráter e temperamento individual, com intuição pessoal do que com técnica. Ao artista, cabe mais o tormento de se descobrir enquanto tal e o de descobrir, construir sua linguagem. A invenção é criação, técnica é reprodução. O artista, porque traz dentro de si a técnica de que se imbuiu, não a professa: inventa-a ou reinventa-a. O técnico, porque ainda não a tem, professa-a e tenta se afirmar através dela. No cinema técnico, a imagem mais nos distancia do que nos atrai. Justamente por se tratar de uma imagem de cópia, de reprodução de aparências, de imitação, portanto, uma imagem fundada em decalques, caricaturas, traços de acordo com generalizações apressadas e estereótipos. E isso nada tem a haver com cinematografia, com o cinema enquanto escritura da realidade. Hoje, fundamentalmente, no país, temos um cinema onde a imagem perdeu os sentidos da cinematografia. É certo, portanto, quando se diz que temos filmes, mas não temos mais o cinema em nossas telas. E este é um dos pontos de fragilidade de nosso cinema atual e a razão de, aos poucos, deixarmos do hábito de ir ao cinema para ver os filmes que nele estão sendo ofertados: o naturalismo e o maneirismo que, aos poucos, devolvem-nos ao formalismo exibicionista e narcísico, ao recrudescimento e à ignorância estética, ao alheamento e ao menosprezo do que é essencial ao humano: tangenciarmos o infinito através da linguagem mítica que é própria da poesia.

Guerra do Paraguay devolve-nos à possibilidade de sermos atraídos por imagens e sons dentro de um tempo interno que é poderosamente alucinatório e revelador. Alucinatório porque nos puxa para o espetáculo circunscrito ao universo do trágico, pelo que proporciona como fruição estética, vivência dos fenômenos que mostra, ideias que discute ou defende, poema épico com grandeza de sentimentos na exposição de seus temas. Um filme que nos resgata a paixão pelo teatro e pelo cinema como linguagens e formas de expressão, pela reflexão ética e moral das ideologias através da poesia, da história e da política na ótica da épica, um debruçar-se sobre nossa essência enquanto país, continente, ser coletivo com modos de ser, identidade dentro do mundo como possibilidades. Rosemberg não denuncia ou fala de um problema antigo para o qual parece não encontrar solução, ele fala sobre quem conseguimos ser, o que produzimos, pelo que somos capazes. Brado de agonia guerreira, sem sucumbir, ao persistir em algo que afirma não ser mero jogo de palavras, professa uma possibilidade que é condição de vida e  modo de ser; no caso, não se trata apenas de jogar com as ideias transformando-as em cartas do baralho. Como não foge à vida, é sempre um gesto de afirmação pela vida, pelo sim. O cinema de Luiz Rosemberg Filho é um cinema, no fundo, otimista. Porque investe sempre na possibilidade dos afetos.

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