Ano VII

Além das Palavras

sábado fev 24, 2018

quietpassion

Além das Palavras (A Quiet Passion, 2016), de Terence Davies

A primeira cena de Além das Palavras mostra uma madre superiora separando as alunas de um colégio de freiras entre as que querem seguir uma profissão (à esquerda da tela) e as que querem seguir ao lado de Deus (à direita). Vemos sobrar uma única garota no centro, uma garota até então não notada por nós, que se revela cheia de dúvidas sobre seu futuro e sua vocação. A única coisa que ela sabe, e nós saberemos logo depois, é que deseja ser escritora, num contexto em que às mulheres não era permitido entrar nos meandros da criação artística. Estamos na Nova Inglaterra de meados do século XIX, anos antes do início da Guerra Civil Americana. O que impressiona de início nessa cena é a simetria. Num scope muito bem pensado e iluminado, as alunas ocupam o espaço filmado com harmonia, apesar da desarmonia se impor logo em seguida (o número de alunas que vai seguir o caminho profissional é bem maior). Porque Terence Davies, o diretor, não está tão preocupado com essa simetria, e com os limites do quadro que cortam pessoas pelo meio ou totalmente. Está preocupado em inserir a heroína, Emily Dickinson, no centro de uma espécie de clausura construída por regimes educativos arcaicos e costumes patriarcais.

Emily Dickinson fez sucesso póstumo como poetisa da melancolia e da condição feminina sob uma sociedade capitalista e patriarcal. Seria esperado que um diretor menos talentoso caísse na armadilha de acentuar a crueldade masculina e tornar a biografada quase uma santa, sem defeitos, um verdadeiro poço de virtudes. Não é bem assim. Emily não sabe muito bem como sair da clausura, e por vezes tenta da maneira mais desajeitada. Não tivesse uma família compreensiva, com um pai de bom coração e compreensivo, apesar de arcaico, teria entrado pelo cano mais cedo. O que não quer dizer que ela tenha escapado de seu destino melancólico. Mas não escapou também por sua veia intransigente, por sua personalidade de grande artista que não faz concessões. Uma verdadeira artista, com toda sua integridade (e alertada pela irmã de que integridade demais é prejudicial).

Formalmente, Davies não faz muita questão de esconder uma certa familiaridade com o estilo de James Ivory. Mas aposta em pequenos momentos de invenção espalhados por sua narrativa, para preenchê-la com poesia. Sim, há o risco de poesia calculada, racional, forçada, que Davies evita ao máximo e com rigor, mesmo se de vez em quando fique ameaçado de cair em cheio na armadilha. O primeiro a ser destacado entre esses muitos momentos é uma panorâmica que sai de Emily jovem, percorre a sala mostrando toda sua família para encerrar novamente em Emily, que desta vez está com a feição totalmente modificada. Não mais com a curiosidade do início do plano. Agora ela carrega um ar de quem tomou consciência de que é prisioneira de costumes contra os quais não terá força para lutar. É um desses momentos que dependem da sensibilidade do diretor para controlar o tempo e a luz, e é a primeira batalha vencida por Davies.

O segundo momento que vale ser destacado vem logo depois. A família Dickinson vai tirar fotos para a posteridade. O fotógrafo pede para que o pai sorria, ao que ele responde: “eu estou sorrindo”. Todos em seguida repetem esse falso sorriso, ou o não-sorriso que se quer sorriso. Mas o rosto de cada um envelhece indicando a passagem dos anos (15? 20? 25?). A sequência termina com uma Emily mais madura, com o brilho já bem esmaecido, não mais interpretada por Emma Bell, mas por Cynthia Nixon, uma atriz impressionante no registro de uma escritora cujo brilho criativo aumenta na mesma proporção em que o brilho de sua aparência diminui. Uma diminuição causada por uma personalidade avessa a concessões e extremamente crítica às exigências sociais.

Finalmente, o terceiro momento surge quando Emily já se tornou reclusa, quase não sai do quarto, mas recebe de forma mágica o sermão do reverendo Wadsworth. Este é presenciado por sua irmã Vinnie, que conta para Emily o conteúdo ao chegar em casa. O toque de Davies consiste em nos mostrar parte desse sermão antes mesmo da volta da irmã, com o reverendo refletido parcialmente na janela do quarto de Emily, uma figura celestial que tem primeiro uma aparição espiritual para depois ser apresentado em carne e osso. É brilhante porque ao ouvir o sermão pela atravessadora Vinnie, Emily já se apaixona pelo reverendo. Algo que a posterior apresentação física não vai diminuir, mesmo que se prove um amor impossível. Só me lembro de algo assim tão forte espiritualmente no cinema contemporâneo em Drácula de Bram Stoker, o belo romance de Francis Ford Coppola. Cusiosa ligação entre dois românticos do cinema, um pertencente à facção da Nova Hollywood forjada por Roger Corman, outro da proletária Liverpool dos Beatles.

É esse contaminar da forma pela poesia que edulcora o filme e o leva às mais altas possibilidades, embora o formato esteja limitado por um cárcere que beira o academicismo, e que mais uma vez Terence Davies deve contornar. Por vezes, a mão pesa. Dois planos de epilepsia são desnecessários. Um deles, o primeiro, com Emily deitada na cama e a luz do exterior invadindo o quarto em cheio, porque é longo, e surge logo depois de um outro plano que mostra Emily caindo ao chão com sua cabeça escondida pela sombra da cama – uma maneira de poupar a personagem de ter seu sofrimento escrutinado pelo público. O segundo, parecido com esse primeiro, mostra Emily na cama. É breve, mas demora o suficiente para que lembremos do primeiro ataque. Pialat soube mostrar como poucos a agonia de uma doente terminal em La Guele Ouverte. Mas o registro ali era de uma secura adequada ao explícito. Aqui, Davies trabalha o tempo todo com sombras, com não ditos, com temores e abstrações que transformam, e transtornam, a vida da poetisa. Seu sofrimento, esparramado para quem quiser ver, dá alguns golpes na feitura fílmica, e quase atinge em cheio seu lado poético e inventivo.

Como filme algum é perfeito, podemos louvar este que é provavelmente o melhor filme de Davies, o melhor a estrear no Brasil em 2017 e o melhor filme inglês deste século.

Sérgio Alpendre

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br