Ano VII

O outro lado da esperança

domingo fev 18, 2018

esperanca

O Outro Lado da Esperança (Toivon Tuolla Puollen, 2017), de Aki Kaurismaki

As primeiras imagens de O outro lado da esperança mostram, alternadamente, uma chegada – a do refugiado sírio Khaled a Helsinque no porão de um navio – e uma partida – Wikström abandona a casa, a mulher e o antigo trabalho. Podemos dizer que essas imagens contemplam de forma complementar o movimento feito por Aki Kaurismaki na realização do presente filme: um regresso à Finlândia, abandonando as ambientações estrangeiras de seus trabalhos imediatamente anteriores, O porto (2011), na cidade francesa de Havre, e o curta-metragem para a coletânea Centro histórico (2012), em cenários portugueses. Não que Kaurismaki tenha aí deixado de preservar os elementos que consagraram seu universo peculiar desde os primeiros filmes da década de 1980. Mas temos certamente em O outro lado da esperança um retorno em plenitude a esse universo idealizado, que já foi denominado como “Akilândia”. Lá estão o porto de Helsinque, seus bares e restaurantes vagabundos, as pessoas que lutam pela dignidade na vida diária, as intervenções musicais que conjugam rock’n’roll e canções populares de seu país natal.

Quando, por volta dos cinco minutos de projeção, Wikström (dirigindo) e Khaled (a pé) praticamente se trombam em um quase atropelamento, antevendo um reencontro que só ocorrerá após quase uma hora de projeção, vemos ser gerada uma atenção quanto aos paralelos e disparidades concomitantes nos arcos dramáticos dos protagonistas, o que é reforçado mais a frente quando, passando por situações diversas, os personagens disparam diálogos que falam em “crise e fuga da crise”. Kaurismaki se utiliza de seus já sedimentados recursos narrativos, que incluem uma objetividade quase minimalista, diálogos secos que se reduzem ao essencial ou uma ambientação atemporal que, apesar de ter os pés sempre fincados em uma negação do naturalismo, remete em todos os momentos às questões presentes sobre as quais o cineasta pretende discorrer: a crise econômica, as guerras no Oriente Médio e o fluxo de refugiados na Europa, a presença de um ascendente radicalismo de direita aliada a uma xenofobia agressiva.

O que torna O outro lado da esperança um filme destacado e ímpar, não somente na obra do diretor, como dentro da cinematografia contemporânea, é justamente o fato dos temas citados acima receberem uma abordagem sob um formato que poderia ser executado apenas por Aki Kaurismaki. Nesse formato não há espaço para proselitismo político ou qualquer traço de pieguice, substituídos pelo peculiar senso irônico do autor, aqui em momentos de grande inspiração. Diversas vezes, imagens e ações contradizem diálogos, como nas sequências em que Wikström concretiza a compra do restaurante. Ou então quando Khaled tem seu visto negado pelo tribunal, sob a alegação do fato que “não existiria guerra ou risco à sua vida na terra natal”, contrastando com imagens de bombardeios em Aleppo transmitidas pela TV na cena que se segue.

Ao buscar refúgio na Finlândia, Khaled afirma em certo momento que esse seria um lugar onde “pessoas boas nos ajudam”. Quando o personagem tem essa ajuda negada por todos os canais oficiais, ela surge justamente quando excluídos como ele o socorrem de uma agressão por membros de um certo “Exército de Liberação da Finlândia”. Essa solidariedade entre os pares, um tema igualmente recorrente na obra de Kaurismaki, será a responsável por determinar novos rumos à trajetória do jovem sírio, em especial a partir do momento em que esse é acolhido por Wikström e sua equipe no restaurante. São esses momentos de generosidade, que fazem com que problemas – uma nova identidade para Khaled, o resgate de sua irmã, o reencontro entre Wikström e sua esposa – sejam solucionados numa facilidade digna dos contos de fadas, e que nos permitem criar, ao término do filme, não somente uma esperança positiva quanto à incerteza do destino final de Khaled, como também, mesmo que apenas por alguns momentos, na salvação para um mundo atribulado, ao menos quando este se faz iluminado pela obra de artistas determinados como Aki Kaurismaki ou por um São Jimi Hendrix, cuja imagem preenche expressivamente a parede do cenário principal de O outro lado da esperança.

Gilberto Silva Jr.

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