Ano VII

Manchester à Beira-Mar

sábado fev 17, 2018

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Manchester à beira mar (2017), Kenneth Lonergan

Há um momento crucial no filme de Lonergan em que o passado do protagonista Lee Chandler, progressivamente pontuado no decorrer do filme, nos é finalmente desvendado, se não em sua totalidade, em seu ponto determinante, seu evento traumático: suas três filhas pequenas foram mortas em um incêndio provocado por ele em sua residência. O que se segue imediatamente após isso é um Lee Chandler devastado dando seu depoimento na delegacia. Ele pega a arma de um policial e tenta atirar na própria cabeça. A arma está travada e os policiais o seguram enquanto ele tem um colapso.

Chama atenção na coerência com que o diretor registra a devastação desse homem, continuando, portanto, fiel ao registro que desenvolveu ao longo do filme. Um faux raccord entre pegar a arma e tentar atirar pontuado gravemente pela música, e um corte seco para o mar, os barcos ancorados em um dia chuvoso, e o retorno para o tempo presente. Cabe lembrar também que o recuo ao evento traumático se dá quando da reunião de Chandler com o advogado de seu recém falecido irmão Joe, em que revela ao protagonista que a guarda de seu sobrinho adolescente, Patrick, filho Joe, pertence a ele. Coerente também a escolha do filme em retornar ao incêndio de sua casa nesse momento, pois é somente frente ao advogado, recebendo a notícia da guarda do sobrinho, que Chandler percebe a possibilidade de retorno definitivo a sua cidade natal, ao local do incidente.

Notar a consistência de registro naquele que talvez seja um dos ápices dramáticos de Manchester à beira mar nada mais é do que a perceber que Lonergan não se curva à banalização do sofrimento, ao desespero simplista que correria o risco de se cair ao lidar com um tema como esse. O diretor não cruza a linha da exacerbação dramática, ao contrário, ele se mantém, em seu registro, dando vazão aos atores, aos corpos em quadro, caminhando na borda, na fronteira entre a secura e expurgo sentimental, como se andasse numa corda bamba em que o que rege os fatos e mantém sua narrativa caminhando para frente é a contenção.

Não se trata porém de um recurso frio e analítico, mas de um sistema formal que preza por olhar honestamente para aquelas pessoas, por tentar menos inserir-se estilisticamente e mais manter-se no terreno entre a isenção facilitadora dos fatos e a intromissão inescrupulosa e irônica na cena. Trata-se portanto da compreensão de que os fatos narrados da vida de Lee Chandler possuem a princípio força e interesse o bastante para que se mantenha a distância necessária e o respeito necessário em que o mostrado em tela seja sentido em todas as suas partes pelo espectador.

O trunfo de Lonergan é ancorar-se em uma via oposta àquela em que malabarismos técnicos e formais somam-se a um sentimentalismo piegas e a consonância das escolhas desembocam em um plano fílmico desequilibrado, em que os excessos em todos seus procedimentos acabam por resultar em um esvaziamento completo do drama filmado – algo que poderia parecer tentador ao passo que Manchester à beira mar, em sua premissa, poderia muito bem se enquadrar em um filão já muito desgastado dentro das premiações do filme-independente-sentimental, ou também do filme-autoral-do-fluxo-contemporâneo, da câmera solta e perdida colada aos rostos das personagens que demonstra muito mais um desejo insuportável do diretor em se auto afirmar do que qualquer mergulho no drama, de filmes cuja linhagem remonta ao início dos anos 2000 nos esvaziamentos formais de um Iñárritu, um Meirelles, um Walter Salles, passando pelos publicitários Gaspar Noé e Lars Von Trier, e desembocando no academicismo no qual se transformou a chamada estética do fluxo – iniciada com a força de Claire Denis e Vincent Gallo mas completamente assimilada e enlatada para os festivais por Lucrecia Martel, por Karim Ainouz e muitos outros que se utilizam dessa estética para se atingir um fim controlado amparado por uma cortina de fumaça.

Ao propor um caminho mais sóbrio, de observação, de respeito ao espaço cênico e ao trabalho do ator como força central, Lonergan renuncia todas as facilidades de adesão imediata no cinema contemporâneo e opta por um caminho mais difícil. Difícil porque não facilitador, porque promove as reações mais sinceras daqueles que participam das ações, porque procura compreender suas personagens sem invadi-las e, em tal compreensão, registrar o estado das coisas, o entorno das pessoas e de como esse entorno influencia suas ações, porque dá alguns passos para trás e enquadra seus atores em planos gerais – o que em se tratando de um cinema contemporâneo calcado num drama familiar individual já é motivo de atenção.

Para Lonergan, em Manchester à beira mar, mergulhar no drama de Lee Chandler ou de seu sobrinho não é colar em seus rostos com uma lente grande angular, mas sim se postar na distância exata há alguns metros de ambos para que vejamos o que interessa, para que vejamos em tempo real, com poucos cortes ou movimentos, a relação sincera entre um sobrinho adolescente que acabara de perder o pai e seu tio cujas feridas passadas ainda se encontram em processo de cicatrização. Por isso da beleza do plano em que tio e sobrinho, já ao final do filme, andam pela rua e jogam um para o outro uma bola de tênis – essa é a forma com que ambos traduzem sua conciliação, sem longos abraços ou choros desesperados. Não há em Manchester à beira mar o momento de se escancarar os sentimentos pois isso não seria condizente com as personagens que nos foram apresentadas. Para isso, para que se coloquem as cartas à mesa, basta um diálogo breve entre Chandler e Patrick em que o tio diz “eu não consigo superar”. Nessa fala compreende-se não somente a escolha por não manter a guarda do sobrinho mas também o amor mútuo e a cumplicidade existente entre ambos. Do mesmo modo em que no diálogo entre a personagem de Affleck e sua ex mulher Randi (interpretada por Michelle Williams) basta uma frase – “não existe mais nada aqui” – dita por Chandler para que ela compreenda que frente a perda de sua família não há possibilidades de retorno, de regressão, de um final feliz para ambos – há, porém, um entendimento de que não haverá tempo no filme para as cicatrizes serem fechadas, mas que um seguir em frente melancolicamente pode ser traduzido num passeio de barco entre tio e sobrinho, o que dentro de Manchester à beira mar é a mais bela tradução de um homem que desceu ao inferno e optou por deixar de viver mas que atualmente, por mais dura e fria que pareça a realidade, escolheu a vida. Tradução em que uma simples troca de olhares silenciosa durante uma pescaria é o suficiente para se testemunhar um respeito aos personagens, em uma sinceridade sentida em todos seus movimentos pelo espectador.

Rafael Dornellas

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