Ano VII

Z: A Cidade Perdida

sábado fev 17, 2018

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Z: A Cidade Perdida (The Lost City of Z, 2017), de James Gray

Gabriel Veyre, um dos cinegrafistas que trabalharam ao redor do mundo a pedido dos Lumière, em 1900, posicionou sua câmera em uma espécie de carroça que ia embora de uma pequena vila em Namo (Indochina). Em menos de um minuto, um travelling de afastamento retrata os moradores da vila olhando para o então novo aparato – alguns apenas o encarando, outros (crianças em sua maioria) maravilhados com a novidade. Conforme a câmera se afasta algumas crianças correm em direção a ela e o que temos ao final do pequeno filme é a fixação do movimento ao corpo de uma garota, que corre em nossa direção sorrindo e tem seu rosto eternizado na história do cinema.

O gênio de Lumière ia muito além da mera documentação de uma época, ou da exploração de um novo mecanismo de captura de imagens. Como declarou Jean Renoir no filme Louis Lumière (1968), de Eric Rohmer: assim como a genialidade dos primeiros ceramistas da civilização grega, cujos objetos encontrados em Micenas continham em si a crueza e a totalidade de um esforço primeiro de criação dentro de uma técnica ainda muito rudimentar e de difícil assimilação, da página em branco para o ofício de toda uma história humana, tudo está contido nos filmes de Lumière – encenação, ficção, documentário, rigor formal e, acima de tudo, uma profissão de fé irremediável na noção de se apreender e se desvendar um mundo novo através da captura de uma expressão, na sensação de descoberta e maravilha gerada pela impressão da imagem na película.

Dentre as inúmeras declarações mais recentes realizadas por James Gray nas diversas coletivas de promoção de seu novo filme Z: a cidade perdida (The lost city of Z), duas saltam aos olhos. Em uma delas o diretor afirma que uma prática muito comum no cinema clássico está se perdendo: a crença no cinema como arte popular em sua essência mas que ao mesmo tempo carregue em seu ofício um olhar autoral, uma particularidade de cada realizador de ver o mundo, uma espécie de meio do caminho na indústria, algo que em Howard Hawks, John Ford, Raoul Walsh, Fritz Lang, Alfred Hitchcock, e em muitos outros autores, era prática mais do que comum e constante. Em outra declaração James Gray afirma que embora em sua vida pessoal não seja praticante de religião alguma, na arte se considera um crente, um homem de fé.

Tais declarações não poderiam estar em maior coerência com o trabalho que realiza. Z: a cidade perdida é um filme de época filmado em 35mm no meio da floresta equatorial. A aventura e força motriz de sua narrativa, por sua vez, nada deve aos códigos de gênero do cinema clássico e passa muito longe de uma simples homenagem ou reciclagem. Gray utiliza desse “meio do caminho” como ponto de partida para construir uma jornada interior muito particular através de Percy Fawcett – sua relação com a mulher e filhos, com seu grupo de exploradores, com o novo mundo a ser desbravado, com seu país em guerra, e principalmente com o sua própria profundeza interior.

Partindo da obsessão do protagonista em voltar constantemente à selva e encontrar a cidade perdida, vemos em Gray a constatação de um exercício de humildade perante o mundo, de encontrar-se consigo conforme percebemos que as forças externas que movem a todos são muito maiores e mais enigmáticas do que imaginávamos. “Nós todos somos feitos do mesmo barro” diz Fawcett para o filho (que decide se juntar ao pai em uma última expedição) ao encontrarem e conviverem por um tempo com índios em uma aldeia. “Há tanto mistério na vida meu filho. Nós sabemos tão pouco desse mundo”, completa o protagonista para o filho temeroso ao constatar que serão entregues a um ritual de sacrifício após serem capturados por outro grupo local.

Da aventura exprime-se sua essência. Em Gray, de caráter espiritual – o que tanto as diversas expedições realizada por Fawcett e seu grupo, quanto seus embates com seu filho mais velho, com sua mulher, sua posição nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, tem como objetivo inferir reflexão sobre o espectador. E sua tradução como sendo uma constante batalha por algo que se crê e que se necessita realizar.

Da gravidade litúrgica com a qual Gray constitui suas obras, de Fuga para Odessa à Z: a cidade perdida, sem qualquer desvio de atenção ou concessão, a crença na imagem como captura de um universo possível, de um ponto de vista – a tradução essencial da palavra escrita sob a luz cinematográfica às imagens que permanecem conosco após terminada a sessão: Tim Roth sentado ao lado da mãe e do irmão ao final de Fuga para Odessa (Little Odessa, 1994); Mark Wahlberg emergindo das sombras, tendo o rosto iluminado pela metade, e voltando à escuridão após encontrar sua prima e pedir para visitar a mãe que está doente em Caminho sem volta (The yards, 2000); Phoenix desesperado em seu carro vendo seu pai ser assassinado, em uma cena em que o som que ouvimos com mais evidência é o do para-brisas contra a chuva torrencial, antes de desabar na rua em câmera lenta em Os donos da noite (We own the night, 2007); Gwyneth Paltrow iluminada apenas por sua silhueta, coberta de sombras, enquanto caminha na direção de Phoenix para dar a notícia de que não irá embora com ele em Amantes (Two lovers, 2008); Marion Cotillard indo embora junto de sua irmã diante do reflexo de um fragilizado e derrotado Phoenix ao final de Era uma vez em Nova York (The Immigrant, 2013).

Há dois momentos em Z: a cidade perdida cuja tradução define a mise en scène de Gray e imprime o registro de sua batalha pessoal e sua crença. Em um deles, já em sua última expedição junto do filho, Fawcett leva uma câmera fotográfica e registra seu cotidiano em uma aldeia indígena. O cinemascope colorido dá lugar ao preto e branco e algumas fotos nos são mostradas. Em um exercício de alteridade, síntese histórica e consciência estética, décadas são congeladas em fotografias que comprovam não somente o encontro entre dois mundos muitos distantes como também o assombro testemunho perante as próprias imagens construídas em um século de cinema.

Em outro momento, um pouco anterior ao citado acima, Fawcett e seu filho Jack se preparam para deixar seu lar na Europa e seguir viagem. Despedida e recepção são traduzidos em uma sequência de travellings, da família de ambos, dos filhos mais novos dormindo em suas camas, assim como sua esposa sozinha em seu quarto e de pai e filho no trem já na floresta. A câmera é colocada no carro que os leva rumo ao novo mundo e em um movimento de afastamento vemos a filha mais nova de Fawcett, irmã de Jack, correndo em direção à câmera, acenando para o pai e para o irmão.

Pouco mais de cem anos separam as imagens registradas pelas expedições dos Lumière na Indochina e pelo filme de James Gray. Ao final, a constatação de uma profissão de fé inelutável à uma prática cuja essência é assumida pelo realizador como uma batalha pessoal, espiritual. Uma crença irrestrita na imagem cinematográfica em um momento na história das formas cuja banalização da imagem atinge níveis exorbitantes. Uma adesão ao cinema cujas origens nos remete às primeiras descobertas de um novo olhar perante o mundo e cujo presente se configura meio a um tempo em que tais batalhas, de Fawcett, de Jack, de Gray, mantém-se como resistência quase solitária. Um filme memorável.

Rafael Dornellas

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