Ano VII

Os Últimos Jedi

sábado fev 17, 2018

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Star Wars Ep. VII: Os Últimos Jedi (Star Wars Ep. VII: The Last Jedi), de Ryan Johnson

Se existe uma coisa minimamente interessante a se observar nos Mickey Wars é a brutal e polar ruptura com o passado: a crença quase doentia por parte de George Lucas no poder da ficção, tão densa que impedia a infiltração de poderosos fatores extra-fílmicos em sua essência (uma das grandes motivações, por exemplo, do diretor para realizar as continuações de Uma Nova Esperança era poder construir um império à Zoetrope, menos hippie e mais cowboy yuppie de flanela e calça jeans, o que, de fato, Lucas brilhantemente conseguiu com o Rancho Skywalker) é subjugada pela patológica intolerância à ficção que é a marca registrada da Neo-Lucasfilm comandada por Kathleen Kennedy, tão gelatinosa que impede que os novos longas tenham outra função além de serem filmes sobre si mesmos. É poesia e rima, naquele tipo singelo, embora eficiente, de espelhamento dicotômico que Lucas sempre adorou, mas que deve causar algum tipo de tristeza no sujeito que é a personificação das contradições da Nova Hollywood, em toda a beleza e perversão do ideário.

Não há ideário em Os Últimos Jedi, um produto minuciosamente construído para se anular, para progredir para trás, para homogeneizar a diversidade, projetar nostalgia. Cada escolha expondo certa visão de mundo é neutralizada em seguida, tomando o cuidado de não deixar qualquer migalhinha no chão. “Esqueça o passado, mate-o se for preciso”, diz o vilão. Pouco depois, o mesmíssimo holograma que serve de faísca para o McGuffin do Episódio IV é usado para convencer Luke Skywalker a aceitar uma tarefa. “Isso é golpe baixo”, reclama o personagem, em um dos diversos momentos em que o filme se defende com a autoconsciência que deixaria o Mel Brooks de Spaceballs um tanto invejoso. Mesmo uma das mais suspeitas “mensagens” do longa é sutilmente auto-anulada: uma sequência é elaborada para mostrar não seria preciso estudo ou conhecimento escrito para se conseguir poder, com o fantasma de Yoda (fantasmas, projeções: nada há de concreto nesse episódio VIII) conjurando um raio que ateia fogo na árvore que guarda o livro com ensinamentos Jedi – o equivalente à religião nos Star Wars de George Lucas, ou seja, o homenzinho verde tenta eliminar a bíblia -, não sem antes fazer chacota do antigo discípulo, que nunca teria lido nada do que está naquelas velhas escrituras (paródia marvelliana de Jesus amaldiçoando a figueira que não dá mais frutos?). Tudo isso para vermos, em seguida que Rey surrupiou o livro e o carregou consigo para fora do planeta.

O Supremo Líder Snoke (a piscadela irônica saracoteia logo no título atribuído ao personagem) é outro dos exemplos, talvez o mais pitoresco: nas primeiras aparições, o tomamos pela personificação do discurso negativo sobre o vilão Kylo Ren em O Despertar Da Força. Um velho decrépito, vestindo um roupão um tanto obsceno, sentadão em um trono rodeado por figuras imóveis, que lembram, de fato, action figures, reclamando das escolhas feitas por outrem parece a descrição senso-comum de um fã da trilogia original de Star Wars. “Você só um chorão querendo ser o Darth Vader… tire essa máscara ridícula”, é uma frase proferida por Snoke ou um comentário de Youtube? Quando o velho é cortado ao meio por um sabre de luz, em uma sequência muito bem executada por Ryan Johnson, é como se o filme estivesse dilacerando seus detratores (e, de alguma forma, também os fanáticos que gastam tempo elaborando teorias, entre o lançamento de um longa e outro, sobre os personagens e a importância que terão na narrativa). Poderia ser um gesto iconoclasta, descartar um vilão genérico, um derivado com certo quê de inacabado de Darth Sidious, logo no meio do filme, no episódio central de uma trilogia. Iconoclasta também poderia ser o sintomático gesto de Luke Skywalker em atirar por cima do ombro, em direção do abismo, o sabre de luz que lhe é passado diretamente em mãos, como um diploma, uma relíquia, uma memorabilia, logo em sua primeira aparição. Mas tudo não passa de galhofa.

Como se trata de um filme que esquiva como um lutador de WWE, que constantemente se anula e que acima de tudo está preocupado em falar sobre a própria marca Star Wars, o alívio cômico é a grande vedete de Os Últimos Jedi. Todo tipo de tensão, drama ou possível força de imagem é imediatamente anestesiada pelo humor autoconsciente e cínico – medroso, portanto.  O gesto de Luke, ready-meme, feito para virar gif e poluir os replys dos twitters da morte, é um desperdício de drama. A lingueta para fora do velhote Snoke, caído no chão como um pedaço inútil de baço que escorregou da mesa de cirurgia, parece reforçar a opinião que Johnson teria sobre esse tipo de figura (que, além de ser avatar do público reclamão, poderia ser encarado como a representação de um típico magnata; sabe-se que Hugh Haffner “inspirou” de certa maneira o personagem). Eis aí uma ideia interessante, amortecida segundos depois, com a entrada na sala de Genaral Hux, o ariano trapalhão. A cena tem todos os elementos para ser pungente, mas precisa terminar engraçadinha por que essa coisa de bem e mau não tem nada a ver, tem que dar uma zoada kkkkk.

Curiosamente, as únicas coisas com as quais o diretor não brinca são os famosos temas “progressistas”, marca da administração K.K na Lucasfilm: temos lá a diversidade United Collors of Benetton do elenco (embora o sugerido romance inter-racial entre uma branca e um negro, no episódio VII, tenha sido substituído pela menos “chocante” relação entre um negro uma asiática, afinal o progressismo de blockbuster tem limites, claro), o ativismo pró-animais, em uma sequência que infla a duração total em mais 30 minutos com consequências dramaturgicamente nulas (o que não é um problema intrínseco; sou a favor de suspensões temporárias da narrativa, quando há algo de realmente interessante a se olhar na tela) e a projeção delirante de uma ideia bem pouco inspiradora de feminismo (Laura Dern de cabelo roxo, escondendo o plano de seus liderados e sendo obrigada a se sacrificar justamente por não ter comunicado ao seu grupo que possuía um plano). Tais agendas, enfiadas goela abaixo na narrativa, evidentemente provocam vômito no próprio organismo do filme, que devolve restos não digeridos. Ou seja, a exigência, por exemplo, em cumprir cotas de representatividade, obriga que se atribua papel heroico à personagem de origem asiática com sobrepeso, à revelia dos “desejos” internos da trama. Johnson sai-se com um patético sacrifício – a solução preferida dos preguiçosos para atribuir heroísmo à dramaturgia –, carregado de uma moral febrilmente equivocada. Nessa toada militante, aquilo que poderia ser genuinamente belo, como a flutuação santificada de Leia no espaço (“a força é feminina”, anuncia as camisetas usadas por Kathleen Kennedy em eventos para fãs) acaba adquirindo involuntário tom piegas, por conta da lógica estabelecida pelo filme, que alterna, com a previsibilidade de um Pêndulo de Newton, entre o humor cínico e a “lacração” solene, humor cínico e “lacração” solene.

Os Últimos Jedi, a ego trip millenial interminável – o tempo de duração inflado faz parte de estratégia de ocupação das salas de cinema -, acaba, desta vez sem querer, anulando a própria vontade de ruptura com os Star Wars pré-Disney, em que o desejo de ficção e a fé na criação estavam acima de tudo: com uma rápida procura online pode-se encontrar diversos textos e vídeos de pessoas descontentes com o longa apresentando suas próprias versões de como a trama poderia ter se desenvolvida dessa ou daquela maneira. Ainda que tal exercício seja mais um sintoma da preocupante obsessão pela narratologia típica do público de hoje, não deixa de revelar o desejo em regar o deserto de ideias que é Os Últimos Jedi. A ironia final: o fan service e a fan fic, práticas e modelos seguidas matematicamente pelas duas recentes obras da saga, voltam-se contra a própria empresa que as utiliza como isca para fisgar os ávidos fãs. Até mesmo o cardume em algum momento percebe o prêmio na ponta do anzol tem gosto de morte.

Wellington Sari

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