Ano VII

George A. Romero

sábado fev 17, 2018

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George A. Romero (1940 – 2017)

Por Rafael Dornellas

Dois zumbis, que antes de estarem mortos eram de clãs familiares rivais (O’Flynn e Muldoon) na ilha onde habitavam, um de frente para o outro, interceptam-se na linha do horizonte, filmados em um cinemascope imponente como um duelo final de algum western, e atiram suas armas vazias, repetindo a ação que tanto praticaram em vida, agora de forma mecânica, como se remetendo em um último fio de memória aos dias em que havia consciência em suas mentes.

Tal cena descrita acima – cena final de A ilha dos mortos (Survival of the dead, 2009) – além de ser a representação concreta do último plano da carreira do cineasta George A. Romero, retoma e atualiza, desde a escolha do aspecto da janela do filme, até os enquadramentos e encenação, uma tomada de posição acerca do tratamento dado à imagem no seu devido tempo e sua evolução ao longo dos anos em que esteve vivo e realizando.

Romero, após reiniciar sua representação do fim do mundo na série “dos mortos” com Diário dos mortos (Diary of the dead, 2007) e atualizar sua representação em um formato found footage, continua a história em A ilha dos mortos com uma opção diametralmente oposta ao formato anterior: no lugar do found footage e do registro documental retornam à tela o cinemascope e o plano fixo; no lugar do caos da recente descoberta por um grupo de jovens que os mortos voltaram à vida, um momento posterior, de mais calmaria, em que a ação se concentra em uma história de vingança, de conluios familiares cujo fundo e ambiência é ilustrada pelos mortos que caminham.

Sabe-se que nas últimas décadas o “tema” zumbi voltou a ser evidência, em diversas tentativas de atualizar o gênero para a TV e também em inúmeras produções milionárias para o cinema. Dado tal panorama, não nos cabe adivinhar as motivações de Romero em suas escolhas, muito menos perder-nos em um vazio exercício de interpretar forçadamente uma suposta simbologia nos temas de seus últimos filmes, ou na estética com que o diretor os concebeu. Importante, porém, é a constatação de uma escolha formal em seu último trabalho que olhe para trás, que evidencie não somente um retorno neoclássico ao gênero que constantemente atualizou e refletiu sobre, mas também uma possível consciência de que em tempos de diluição estética e reciclagem pós-moderna de conceitos já bem estabelecidos, a melhor maneira de se posicionar é em sua construção formal, e nela representar uma resistência frente aquilo que é produzido e infelizmente dita as regras nas primeiras décadas deste novo século.

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Romero morreu em 16 de Julho de 2017 e a revisão de sua obra, além de uma necessária homenagem, insurge com força cada vez mais duradoura, força de uma das reservas morais do cinema norte-americano, que, assim como Joe Dante e John Carpenter, por exemplo, e cada um à sua maneira, permaneceu sempre atento ao mundo a sua volta e ao instante em que filmavam, sem curvar-se à imposições estéticas, padrões e demandas culturais. Ainda mais sentida será sua falta se pensarmos que tais figuras filmam cada vez menos – um dos últimos grandes filmes de Joe Dante, Pequenos guerreiros (Small Soldiers), data de 1998, e John Carpenter, que dirigiu diversas obras primas nos anos 90, tornou-se um cineasta bissexto e seu último longa, Aterrorizada (The Ward), foi lançado em 2010 – e que Romero destacava-se por manter em alto padrão sua produtividade nas últimas décadas e por ter entrado no século XXI com a obra-prima Terra dos mortos (Land of the dead, 2005).

 Ao contrário do caráter insular até então imperante em sua hexalogia, em Terra dos mortos o horizonte é ampliado e as barreiras se rompem quando acompanhamos ao mesmo tempo os diversos extratos sociais em um mundo já estabelecido e reorganizado pós-apocalipse. Nada mais atual e condizente com sua época do que isolar a classe materialmente dominante, e liderada por um Denis Hooper magnata, em um prédio de luxo fortificado com “tudo o que todos precisam”, e exibir esse “paraíso” como propagandas em série de grandes empreendimentos imobiliários.

  Na tentativa de não cair na repetição acerca da importância de Romero para um gênero cujo pioneirismo e impacto ajudou a estabelecer, olhemos atentamente para sua hexalogia dos mortos de modo a notar uma coerência extrema de ideias, de temas e de forma. Se A noite dos mortos-vivos (Night of the living dead, 1968) servia também de metáfora ao pânico da guerra fria, do mundo pós bomba atômica, e colocava em prática um cinema cujas forças se voltavam para o grupo heterogêneo de personagens formado em seu núcleo, em um ambiente hostil, em que a ameaça externa e desconhecida o compeliria à união de forças tendo a rigidez moral como termômetro principal – aqueles não possuidores de humanidade e senso de ética deverão ser aniquilados, colocados à parte do grupo principal, exterminados pelos mortos-vivos e transformados em um deles –, as sequências Despertar dos mortos (Dawn of the dead), de 1978, e Dia dos mortos (Day of the dead), de 1985, acentuavam o isolamento dos protagonistas enquanto passavam também a olhar de forma a continuar progressivamente certa evolução nos zumbis.

Questão de extrema importância para Hawks anos antes, e colocada à prova de exaustão por John Carpenter durante quase toda sua carreira, o grupo central de personagens era formado no primeiro filme da hexalogia dos mortos e se manteria até pelo menos sua terceira sequência. Em Despertar dos mortos Romero confina seu grupo dentro de um shopping e os coloca lado a lado num movimento de limpar os zumbis que caminham pelo local e, uma vez isolando-se das criaturas, viverem o sonho americano dentro de um microcosmo assustador cujas portas de vidro travadas separam mortos-vivos das três personagens que aproveitam sem restrições das lojas e departamentos daquele ambiente propício. Logo no início do filme, ao chegarem ao local de helicóptero e pousarem no teto, o grupo observa através do vidro o shopping repleto de zumbis. Stephen, ao ser questionado o porquê deles estarem caminhando em um shopping, diz em um plano frontal: “talvez por instinto, memórias, esse é um importante lugar em suas vidas”.

É mais que provado e percebido o constante comentário social e político presente nos filmes de Romero, em sua hexalogia mas não somente. Mas é de extrema importância apontar, porém, as razões pelas quais distanciamos o cineasta do cinema temático contemporâneo. Assim como nos já citados Joe Dante e John Carpenter, as relações estabelecidas nos grandes filmes de Romero são colocadas lado-a-lado e constituem um aspecto planificado, em que os rostos e corpos não são mais do que agentes físicos praticantes da ação. Tal procedimento acarreta em um fluxo contínuo de atuação cuja representação, cuja forma, é o fim que irá compor o drama, as ambiguidades e contradições, a representação social e política. É justamente por não amaciar sua representação formal e apostar todas as forças no choque do corte, na profundidade do plano, e na relação cênica das personagens, que Romero, assim como Dante e Carpenter, encontra-se em uma posição oposta de um cinema dos temas e das questões sociais como pretexto. Não é somente pelo comentário social que seus filmes deverão ser lembrados, mas sim por conseguir de sua proposição estética uma síntese que integre o tema como consequência atingida.

Se em A noite dos mortos-vivos Romero, da mesma forma que Carpenter anos depois em Assalto à 13ª DP, isolaria seu grupo em uma casa contra uma massa disforme e desconhecida que invade o local, e em Despertar dos mortos já com algum conhecimento acerca daqueles zumbis, o grupo se isolaria em um shopping contra todos e luta ao final contra outro grupo de humanos que invadem o local, em Dia dos mortos, de zumbis entorpecidos pela memória do consumo de sua vida pregressa os mortos passam a ter alguma consciência e a adquirir aprendizado em um mundo ainda mais hostil cuja militarização extrema e nociva dita as regras. Assim como ao final de Terra dos mortos o grupo sobrevivente poupa os zumbis (agora organizados por lideranças que pensam) por estarem “apenas procurando por um local”, e o inimigo (o magnata Denis Hooper) real morre impiedosamente, em cada um dos filmes é estabelecido um olhar que privilegia a busca pela humanidade em momentos limite. Na maioria das vezes o inimigo real não é aquela massa de mortos-vivos, mas sim os militares que eliminam a todos que contrariarem suas posições em Dia dos mortos, os próprios seres humanos que matam com um tiro na cabeça o único sobrevivente da casa sitiada em A noite dos mortos vivos por confundirem-no com um zumbi, os saqueadores em Despertar dos mortos.

No retorno ao apocalipse em Diário dos mortos, Romero, longe de uma atualização banal de sua série, utiliza o found footage para, intercalando com imagens documentais espalhadas pela internet, aferir seu olhar sobre a política do medo, sobre a construção de discursos de terror e o bombardeamento de imagens por todas as telas imagináveis, sobre a banalização do próprio estatuto da imagem e sua diluição em reproduções e olhares pré-fabricados nas redes imateriais.

Ainda que sua hexalogia dos mortos continue presente em sua carreira com maior visibilidade, é possível afirmar que o leque de caminhos tomados por Romero, assim como seus temas constantemente explorados, deixavam suas marcas nos igualmente impressionantes Exército do extermínio (The crazies, 1973) e Martin (1978). O aspecto rudimentar da imagem, o 4:3 em preto e branco, que Romero utilizava em seu favor e coroava definitivamente ao transformar a morte do protagonista em diversas fotografias tiradas das queimas de corpos dos zumbis durante os créditos finais de A noite dos mortos-vivos, ganha continuidade em Exército do extermínio nos registros, agora em cores, do delírio coletivo da pequena cidade tomada pelo vírus, que se aproximam do documental e, assim, tornam a experiência de assistir ao filme tão aterrorizante quanto a do grupo fugitivo que tenta se esconder do cerco fechado pelo exército ao mesmo tempo em que temem pela infecção. Mais uma vez a burocracia militar é execrada pelo humor ácido e pelo olhar cirúrgico do qual Romero deposita sobre os comandantes da operação e sobre a paranoia generalizada: o médico que encontra a cura é confundido com as dezenas de pessoas infectadas que deliram pelo local e os créditos finais sobem enquanto um dos militares e chefes da operação é resgatado de cuecas por um helicóptero, balançando com a cidade infectada a seus pés.

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Inúmeros são os motivos pelo qual o assombro frente aos grandes filmes de Romero permanece tempos depois das sessões, muitos já citados acima, mas talvez um dos maiores deles esteja na essência resultante do triunfo de Martin: a crença no mundo filmado. De todas as possibilidades de orquestrar um filme de vampiros Romero se furta em prevalecer o lado humano do protagonista. O horror perante seus atos é justamente a supressão de qualquer excesso e fantasia e a concentração de forças no caráter mundano e prosaico de que Martin age perante o mundo, pois desmistificando seu lado vampiresco passamos a olhar para aquilo como uma patologia, uma herança carregada pela família que se manifesta e descontrola quem a possui, uma necessidade biológica por sangue, “tremores involuntários”.

As ações de Martin no filme caminham de modo a reposicionar o antagonismo para a figura do tio, a figura do místico que acredita em todas as lendas de vampiro e procedimentos para mantê-los afastados. Ao final, uma estaca no peito mata o ser humano e o vampiro, e Romero filma a cena da mesma maneira com que Martin encara sua vida. E o choque se torna ainda maior quando vemos o tio ritualizando seu enterro como se ao invés de expurgar aquilo que já era amaldiçoado o tivesse condenando para sempre.

A crença no mundo filmado ocorre, também, de modo que os confinamentos existenciais e físicos, tão explorados por Romero, extrapolem o racional e terreno e rompam as barreiras do metafísico e abstrato. Tanto em Instinto fatal (Monkey shines, 1988) como em A metade negra (The dark half, 1993) os protagonistas partem de um confinamento interno para darem vazão aos seus desejos e aos lados obscuros de suas personalidades. Allan Mann, em Instinto fatal, fica preso a uma cadeira de rodas enquanto sua macaca geneticamente alterada começa a realizar suas aspirações mais perversas por meio de telepatia. Thad Beaumont, em A metade negra, vê seu alter-ego fictício, e garoto problema, George Stark, ganhar vida e destruir a todos a sua volta somente para que o escritor não mate seu famoso heterônimo.

Da mesma forma que Peter desiste do suicídio e pula no helicóptero no final de Despertar dos mortos; que Sarah, acordando de um pesadelo, vislumbra a calmaria de uma ilha deserta com seus poucos companheiros sobreviventes no final de Dia dos mortos; que Riley e seu bando segue para o norte após liberarem a cidade de suas cercas eletrificadas em Terra dos mortos; Thad Beaumont e Allan Mann lutam contra o confinamento interno, físico e psicológico, pela esperança de vencer ao final e sair da sombra na qual se encontravam em suas vidas.

O microcosmo do shopping em Despertar dos mortos é um elo direto ao grande empreendimento imobiliário no meio das ruínas de Terra dos mortos, e em ambos casos a experiência segregacionista é fracassada e o que resta é o helicóptero que levanta voo em busca de novas terras e um caminhão blindado e fortificado que atravessa como um comboio a tudo e a todos que entrarem em seu caminho, analogia nada sutil mas mais do que necessária com a própria figura de George A. Romero, de quem os filmes culminam em uma postura sintetizada no plano final de seu último trabalho – depois de mortos, os dois homens se levantam e teimosamente continuam postados frente a frente desafiando qualquer adversidade.

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